Friday, December 30, 2011

Thursday, December 29, 2011

Outros tempos, outras modas

Esse tinha sido o tempo do medo,
o tempo do avô sentado no banco
corrido de madeira,
com um rosário nos dedos nodosos
entoando padres nossos e ave-marias.

Tinha sido um tempo de invernias infinitas,
um tempo de janelas tocadas de vento,
de santos pendurados nas paredes caiadas,
de vidraças sem cortinas.

Esse tinha sido o tempo do fim da inocência,
o tempo da avó, encotinhada, na enxerga de palha,
deitando contas à vida, aos bácoros paridos,
ao cântaro sem água, no canto da cozinha.

Tinha sido um tempo de morrinha,
de fumo saindo pelos telhados das casas de pedra,
de campos zurzidos pela chuva,
e galinhas soltas pelos caminhos,
um tempo de poucas palavras.
.

Sunday, December 25, 2011

Edith Piaf -Le Noel de la Rue





No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
(excerto do poema «Fonte», publicado em A Colher na Boca, 1961).
Herberto Helder