Monday, June 16, 2008

Rodrigo Leão , Vita Brevis

O colectivo da Arcádia despede-se, fraternalmente, dos seus amigos e visitantes. A partir de hoje, entra em período de férias.

Colecta Literária* 10 (Proudhon)

Não criamos de modo nenhum uma Igreja, não formamos, falando com propriedade, um partido. Não trazemos ao mundo uma doutrina feita, à maneira dos reveladores, dos filósofos do absurdo e de alguns reformadores contemporâneos. Não somos os representantes de qualquer opinião, de qualquer interesse de corporação ou classe. O nosso princípio é velho como o mundo, vulgar como o povo: é a justiça, e nós tentamos fazer um comentário a seu respeito, que outros continuarão depois de nós e que jamais terá fim... (Justice, Position du probl. de la Justice.)
...A justiça, por melhor que a expliquem, permanece sempre um mistério, tal como a vida. (De la Pornocratie, notas e pensamentos.)
Se o misticismo é indestrutível, há um nome que o resume e que ninguém poderia apagar do pensamento dos homens: é o nome de Deus. Iria eu, estupidamente, fazer guerra a este conceito, de que não sou mestre? Que infantilidade! Antes de desonrar a nossa filosofia com esta ridícula negação..., como esqueceria eu que a revolução apresentou entre os seus dogmas, ao lado do progresso, a tolerância? (Justice, Sanction morale.)
Honremos em toda a fé religiosa, em toda a Igreja...honremos, mesmo no Deus que ela adora, a consciência humana. Conservemos a paz, a caridade, com as pessoas a quem esta fé é querida. É o nosso dever. (Justice, Posit. du Pr. de la Justice)
É notório que a humanidade crente vê coisas que a humanidade erudita não percebe; ela concebe, raciocina e julga de outro modo. Ela conclui de maneira diferente...Reside aí a grande cisão moderna.
Para tornar a sociedade possível, é preciso que uns - os incrédulos - façam um esforço de tolerância, enquanto que outros - os devotos - farão um esforço de caridade.
Devemos todos reconhecer, de boa fé, o que somos, e aceitar a nossa situação; respeitar-nos uns aos outros, e socorrer-nos mutuamente, como se fossemos simultaneamente, e a um mesmo grau, eruditos e crentes, devotos e justiceiros. (Jésus)
Proudhon, A Nova Sociedade, Ed. Rés.

Sunday, June 15, 2008

The Miracle of Our Lady Fatima

Em directo, Avelino de Almeida

Como o Sol bailou ao meio-dia em Fátima

(...) O Sol nasce, mas o cariz do céu ameaça tormenta. As nuvens acastelam-se sobre Fátima. Nada, todavia, detém os que por todos os caminhos e servindo-se de todos os meios de locomoção para lá confluem. (...)
O ponto da charneca de Fátima, onde se disse que a Virgem aparecera aos pastorinhos de lugarejo de Aljustrel, é dominado numa enorme extensão pela estrada que corre para Leiria, e ao longo do qual se postaram os veículos que lá conduziram os peregrinos e mirones. (...)
A hora antiga é a que regula para esta multidão, que cálculos desapaixonados de pessoas cultas e de todo o ponto alheias às influências místicas computam em trinta ou quarenta mil criaturas... A manifestação miraculosa, o sinal visível anunciado está prestes a produzir-se - asseguram muitos romeiros... E assiste-se então a um espectáculo único e inacreditável para quem não foi testemunha dele. (...)

Avelino de Almeida, Ourém, 13 de Outubro, 1917.

O Milagre do Sol














Fátima, 1917

Fragmento XV

Será o milagre uma questão de visão ou interpretação?
Olhando para o mesmo fenómeno uns vêem o sol bailar, outras vêem o rosto da Virgem Maria e outros nada vêem de especial.
Cada criatura é um enigma da vida. A diferença entre o modo como se vê o mundo e o mundo em si é ténue para cada um e infinita entre todos. Um objecto, uma cena vista, claramente, por cada um não é um dado, plenamente, objectivo para todos. Tudo varia consoante a perspectiva.
Olhando para o sol em Fátima todos apreenderam as mesmas cores e formas mas, de facto, não viram a mesma coisa: alguém viu o sol bailar, outro, o rosto cintilando da Virgem Maria, muitos nada viram de especial senão o sol coruscando, momentaneamente, num dia de chuva.
Que vejo eu na imagem?
Vejo apenas uma multidão expectante e ansiosa, o sol sorrindo por entre as nuvens carregadas e sombrias. Um lampejo de beleza. Um momento de eternidade.

Leonardo Ventura, Memórias da I República Democrática

Saturday, June 14, 2008

Não feches as asas

Ainda que a noite chegue lenta,
apagando as canções;
ainda que os outros pássaros
tenham ido dormir
e estejas cansado;
ainda que o medo rumine na sombra
e se cubra o rosto do céu,
meu pássaro, escuta-me
e não feches as asas!

Não. Não são as sombras do bosque,
é o mar que se levanta
como negra serpente;
não é a dança do jasmim em flor,
mas o fio da espuma...

Onde está a verde praia cheia de sol?
Onde está o teu ninho?
Meu pássaro, escuta-me
e não feches as asas!

A noite solitária
atravessou-se no teu caminho
e a aurora dorme
atrás dos montes sombrios.
As estrelas sustêm a respiração
e contam as horas.
A lua débil
boia no céu profundo.
Meu pássaro, escuta-me
e não feches as asas!

Nem a espearnça nem o temor são teus!
Não há para ti palavras
nem gritos, nem lar, nem ninho.
Tens apenas duas asas
e o céu sem caminhos!

Meu pássaro, escuta-me
e não feches as asas!

Rabindrath Tagore, Coração da Primavera

Caetano Veloso, Fale com Ela

Fragmento XLVIII

Os incréus não acreditam na existência de Deus ou do Amor mas quase todos acreditam no Inferno e no Ódio e apontam com dedo acusador a miséria que existe à sua volta. Os crentes que acreditam que o paraíso possa existir, valentemente, descrevem o mundo ideal que os justos habitarão um dia. Segundo esta visão compensa ser justo. Pelo menos, na minha opinião, tem a vantagem de promover simultaneamente a justiça e a esperança. E onde há esperança o ar é mais leve e o fardo da existência menos pesado e fácil de transportar. Afinal tudo o que nos exigem é uma vida regrada, regida pelas normas do bem comum, do coração e da razão.
Deus também habita, oculto, no coração das gentes. Basta ouvi-la, à voz do coração.

Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias

Friday, June 13, 2008

Pauliteiros de Miranda , 5 Outubro 2007

Fragmento CVVIIII

Andam por aí alguns extremistas de memória curta e língua comprida a pregarem que só ao Estado pertence o direito legítimo da violência. Não o entende assim o povo que quando sente que o esbofeteiam não oferece a outra face mas repõe um direito mais antigo que algumas circunstâncias justificam: "olho por olho, dente por dente".
Haja bom senso na Res Publica!

Leonardo Ventura, Memórias da I República Democrática

Thursday, June 12, 2008

Redentores da Pátria, 2008











Papsístrato, Redentores da Pátria, 06









Papsístrato, Redentores da Pátria, 05









Papsístrato, Redentores da Pátria, 04












Papsístrato, Redentores da Pátria, 03









Papsístrato, Redentores da Pátria, 02










Papsístrato, Redentores da Pátria, 01















Papsístrato, Redentores da Pátria,1

Colecta Literária* 9 (Eduardo Lourenço)

Depois do crepúsculo da geração estoicamente épica de 70 e acompanhando-a no seu adeus ao sonho de um país realmente transfigurado e senhor de si mesmo, a paisagem da cultura portuguesa é um deserto de ruínas, um Alcácer Quibir de heroísmo virtual. Talvez por isso, e no rasto de Oliveira Martins, que colocara D. Sebastião no centro da mitologia portuguesa, praticamente nenhum autor representativo do século XX deixou de reescrever por sua própria conta, para marcar ou ressuscitar nela, a história de um rei que, na vida e na morte, converte o empírico e exaltado destino de um povo de configuração imperial num destino messiânico, esperando do futuro uma grandeza que nunca mais será mais universal que a enterrada numa só tarde nas areias ardentes de Alcácer Quibir. De António Nobre a Pascoais, de António Patrício a José Régio, de António Sardinha a Fernando Pessoa e Torga, de Jorge de Sena a Almeida Faria, Natália Correia e Manuel Alegre, em pura transfiguração mítica ou desmistificação exorcística, em verso ou prosa, como Malheiro Dias ou António Sérgio, que mais do que ninguém desejou inscrevê-lo no passado como símbolo de aberração colectiva, a figura e o símbolo de Portugal atravessaram o século como se fossem ao mesmo tempo o seu fantasma insepulto e o seu anjo tutelar.

Eduardo Lourenço, Portugal como Destino: Dramaturgia cultural portuguesa.

Wednesday, June 11, 2008

Geração de 70











(Da esquerda para a direita: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro)

Colecta Literária" 8 (Ramalho Ortigão)

A sociedade portuguesa neste derradeiro quarteirão do século pode em rigor definir-se do seguinte modo: - Ajuntamento fortuito de quatro milhões de egoísmos explorando-se mutuamente e aborrecendo-se em comum.
Chamar pátria à porção de território em que uma tal agregação se encontra seria abusar repreensivelmente do direito que cada um tem de ser metafórico. (...) A pátria não o sítio em que nos coloca o acaso do nascimento, à mão direita ou à mão esquerda de um guarda da alfândega, mas sim o conjunto humano a que nos liga solidariamente a convicção de um pensamento e de um destino comum.
Já um sábio disse: Ubi veritas ibi patria. A pátria não é um solo, é a ideia.
Para que haja uma pátria portuguesa é preciso que exista uma ideia portuguesa, vínculo da nossa coesão intelectual e da coesão moral que constitui a nacionalidade de um povo.
Sabem dizer-nos se viram para aí esta ideia?...

Ramalho Ortigão, Farpas Escolhidas

Fragmento CII

Mais vale uma geração de vencidos do que uma "raça" de eternamente adiados e bandidos.

Monday, June 09, 2008

Montra Lusitana 04


















Papsístrato

Montra Lusitana 03















Papsístrato

Montra Lusitana 02















Papsístrato

Montra Lusitana 01














Papsístrato

"Montra Lusitana" 1













Papsítrato

Sunday, June 08, 2008

Eça de Queiroz (1845-1900)

Essa é que é essa! * 1

"Procrastinare lusitanum est."
Eça de Queiroz, A Ilustre Casa de Ramires

Saturday, June 07, 2008

A Portuguesa

Lista de bens consumíveis, serviços e obrigações morais

Hoje preciso:
uma pastilha para dormir;
duas pastilhas para acordar;
três pastilhas para levantar;
quatro pastilhas para andar motivada;
cinco pastilhas para elevar o moral;
comprar um carro com bateria movida a ar;
implantar silicone no cérebro para aumentar
o volume de transacções das sinapses;
fazer as minhas apostas no Euromilhões;
procurar emprego;
amanhã acabo a lista. Ponto final.
Agora vai começar o jogo de futebol da Liga dos Papões.
Se Portugal ganhar vou depositar uma moedinha na
Caixa do altar de Nossa Senhora de Fátima!
A bem da nação!

Divisa Nacional: Deixa para amanhã o que devias ter feito ontem.

Friday, June 06, 2008

Miguel Torga, "Bucólica"

Miguel Torga

Colecta Literária* 7 (Miguel Torga)

Em tardes assim como as de hoje, cansado de esperar não sei por que milagre, desanimado diante do mapa do mundo que da parede me desafia desde a meninice, começo a pensar no Senhor Ventura. Na sua evocação mitigo durante algumas horas a dor que vai dando cabo de mim. Não me resigno à ideia de ter vindo à luz neste tempo e numa terra durante séculos inquieta de descobrir e saber, e depois tragicamente adormecida para tudo o que não seja olhar-se e resignar-se. Parece-me um castigo imerecido do destino e da história. Mas, como sou homem de impossíveis, salvo-me como posso. Encho-me da lembrança mágica do Senhor Ventura, que nenhuma razão impediu de correr as sete partidas que chamam em vão por cada um de nós. Na sua figura ponho a realidade do que sou e a saudade do que podia ser. Entrelaço no desenho do seu nome quanto a imaginação me pede de distância e de perigo. Vivo nele. E, enquanto dura a memória dos seus passos, sinto-me tão verdadeiro que quase sou feliz.
Miguel Torga, O Senhor Ventura

Fragmento CXII

Não sei se é o passado que me impele ou se é o futuro que avança para mim. Sinto-me às vezes encurralado. Que faço? O mesmo que fiz ontem. Que farei? O mesmo que faço hoje. O que quero? Não quero saber. O que me acontecerá? Não sei. Nada, talvez!

Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias

Thursday, June 05, 2008

Luís Cília, "Canção Final, Canção de Sempre" (1966)

Manuel Alegre

As Naus de Verde Pinho

Sempre que em teu pensamento
o verde pinho florir
abre os teus sonhos ao vento
porque é tempo de partir.

E sempre que mais adiante
não houver porto de abrigo
tens o astrolábio e o quadrante
passarás além do perigo.

Lá onde a noite apresenta
forma e corpo de diabo
vencerás mar e tormenta
passarás além do Cabo.

Verás então o caminho
do outro lado de aqui
e uma nau de verde pinho
que te leva além de ti.

Manuel Alegre, As Naus de Verde Pinho, Viagem de Bartolomeu Dias contada à minha filha Joana (excerto).

Wednesday, June 04, 2008

Terezinha de Jesus

Retratos de Menina















Arquivo: Caixa de Pandora

Monday, June 02, 2008

Burn! Rome! Burn!

BBC Ancient Rome The Rise and Fall of An Empire

Juvenal (fins séc. I - princípios séc. II)






As pessoas comuns, em vez de cuidarem da sua liberdade, estão apenas interessadas em "pão e circo".

"Panem et Circenses"

Durante 120 minutos, o Coliseu assistiu a uma festa de emoção e cor. A plebe apoiou com entusiasmo e berros, os seus favoritos e, na arena, os adversários lutaram encarniçadamente pela vitória.
Os vencedores, escravos capturados na Etiópia, comprados por Crasso, ao senador Graco, e submetidos durante meses a um rigoroso treino físico, foram aclamados pela multidão em delírio. O imperador, emocionado, agitou o polegar para cima, em sinal de favor.
Recebidos no Senado foram premiados com um lauto jantar. Não faltaram o vinho, a música, os discursos e, também, as declarações comovidas e sinceras aos escribas de serviço. Viva Roma! Viva o imperador!
A multidão divertiu-se a valer com o espectáculo e eu também. Pena é que tivesse a barriga a dar horas. Desta vez, teria preferido mais pão e menos circo!

Friday, May 30, 2008

Dulce Pontes, O meu menino é d'oiro

Da Educação

Não espereis pois d'uma creança um elevado grau de excellencia moral. Durante os seus primeiros annos todo o homem atravessou as phases de caracter que atravessou a raça barbara de que descende. Assim também as feiçoes d'uma creança - nariz chato, ventas arrebitadas, labios grossos, olhos afastados, ausência de fossa frontal. etc. - são durante algum tempo as do selvagem, assim como seus instinctos são também os do selvagem. D'aqui a tendencia á crueldade, ao roubo, á mentira, tão geral nas creanças: tendencia que sem o concurso da educação se modifica mais ou menos ao mesmo tempo que as feições do rosto.
Herbert Spencer, Da educação Moral, Intellectual e Physica, trad. Carrilho Videira

Fragmento CX

Quot homines (capita) tot sententiae

Naturalmente, todos fazem sempre o melhor possível. Farão? Todos são muito bons. Serão? Certamente que sim. Mas onde está a escala? Quem avalia? Questões como estas complicam a visão serena e plácida dos nossos governantes, ou não haveria necessidade de estabelecer quotas para as classificações. Salvaguardem-se as aparências já que as avaliações variam consoante quem as aplica e, portanto, não são 100% fiáveis. Verdadeiramente o que interessa é o fraccionamento da escala e as percentagens de cada fatia do bolo das remunerações: 10% de excelentes em qualquer situação não me parece lá muito justo nem muito democrático.

Catarina Tao Tao, Deambulações Virtuais

Thursday, May 29, 2008

Norman Jewison, Um violinista no telhado (1971)

Busca Nocturna

No meu leito, durante as horas nocturnas,
busquei o amado do meu coração:
"Levantar-me-ei e darei voltas pela cidade,
pelas ruas e pelas praças;
buscarei o amado do meu coração".
Procurei-o e não o achei.
Encontraram-me os guardas que rondam a cidade:
"Vistes, acaso, aquele que o meu coração ama?"
Mal os tinha ultrapassado,
quando encontrei o amado do meu coração;
abracei-o e não o deixava,
até introduzi-lo na casa da minha mãe,
no quarto daquela que me deu a luz.
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
pelas gazelas ou pelas corças do campo;
não perturbeis nem acordeis o meu amor
até que ela o queira.

Càntico dos Cânticos

Fragmento LXXXVIII

Devagarinho,
abro a porta do quarto,
respiro a tua pele.
Dentro e preso
ao teu vestido branco,
bate arrebatado
meu coração de jaspe.

Wednesday, May 28, 2008

Fredrick Delius, "La Calinda", vídeo: "The Nest Camera"

Álvaro de Campos, Saudação a Walt Whitman (excerto)

Portugal-Infinito, onze de Junho de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Eu, de monóculo cintado e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio
Sou dos teus, tu bem sabes e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas,Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.

Fragmento CI

Se pudesse regressaria à infância do mundo, ao paraíso perdido. Voltaria a ser a tua escrava e tu o meu senhor. Dar-me-ias quase nada: pão, leite, mel e flores. Eu ficaria agradecida porque não há mais vida para além disso. Perdoa a loucura de procurar um sentido, uma salvação, uma via. Não há nada disso e tu sabes e vês aquilo que eu sinto e vejo.
Mas, nunca é a mesma água que corre pelas margens do rio, nunca é a mesma ponte que une as margens. Faço as exéquias aos meus mortos e sigo em frente. A minha casa é uma ausência, a minha vida uma passagem. Sob os meus passos, a estrada surge, negra e brilhante, tapeçaria de alcatrão,marginada pelo mar.

Tuesday, May 27, 2008

The Foucault Pendulum, Houston Museum of Natural Science

Elis Regina, Como Nossos Pais

Fragmento XCVII

Gostava de saber como será o nosso próximo encontro. Não vou dizer nada de especial.Mandarei vir uma laranjada e pedirei ao empregado do café que te diga que preciso de um chocolate. Será que mo ofereces?
Talvez não. Talvez regateies. Talvez digas: "Não sei se tenho dinheiro". Ou então algo mais elegante e primaveril: "Sabes, o chocolate faz dor de barriga e além disso estraga a pele que fica cheia de borbolhinhas. Eu vou rir-me imenso e dir-te-ei: "Querido, o que foi que aconteceu? Hoje, acordaste cheio de espírito.
Aliás não vou. Sempre é melhor do que apanhar frio ou um escaldão. Depois quem sabe? Receio muito que os deuses nesse dia preguem alguma partida, façam espirrar pregos e canivetes e eu te dê um murro no estômago e tu vomites muito depressa a verdade:
- Abracadabra, shef tassibilium, cuzcuz metziz, merrassim, altabaliz, etc e tal.

- Tal e qual!

Monday, May 26, 2008

Fantástico (1977) - Gal Costa - Negro Amor

Fragmento XCIII

Entonteces-me menina
com o teu sorriso de gaiata,
pendurado nos meus olhos.
Vem a minha casa.
Dar-te-ei rebuçados de amêndoa,
sal, espigas e tomates tenros.

Azougado sopra o vento,
cais no rego d'água.
Demorado o tempo corre,
azougado o vento passa.
Morto é o momento.

Saturday, May 24, 2008



(fotografia retirada da net)

Resistência ao Vivo, "Nasce Selvagem"

Colecta Literária* 9 (Jean Genet)

"Em Chatila, em Sabra, não-judeus massacraram outros não-judeus: o que é que nós temos a ver com isso?" Menahem Begin (na Knesset)

Ninguém, nem nada, nenhuma técnica narrativa poderão descrever o que foram esses seis mesese passados pelos feddayin nas montanhas de Jerash e de Ajlun, na Jordânia, sobretudo as primeiras semanas. Relatar os acontecimentos, estabelecer a cronologia, os êxitos e os erros da OLP, já outros o fizeram. O ar do tempo, a cor do céu, da terra e das árvores tudo isso pode ser descrito sem jamais dar a sentir a ligeira embriaguez, a caminhada acima do pó, o brilho do olhar, a transparência da relação existente não só entre os feddayin, mas entre eles e os chefes. Tudo, todos fremiam sob a copa das árvores, tudo ria e se maravilhava com essa vida tão nova para todos eles, e havia nesse frémito algo de estranhamente fixo, e emboscado, algo de reservado e protegido como alguém que reza sem palavras. Tudo era de todos. E cada um em si estava sozinho. Ou talvez não. Sorridentes esgazeados, em suma. (...)
A palavra "Palestinianos", esteja ela em título ou inserida no corpo de um artigo, ou num panfleto, - evoca-me logo os feddayin num lugar preciso - a Jordânia - e numa época facilmente datável: Outubro, Fevereiro, Março, Abril de 1971. Foi nesse sítio e nessa altura que eu conheci a Revolução palestiniana. A extraordinária evidência do que estava a acontecer, a força dessa alegria de existir tem também o nome de beleza.
Passaram-se dez anos e eu deles nada mais soube, a não ser que estavam no Líbano, os feddayin. A imprensa europeia falava do povo palestiniano com desenvoltura, ou mesmo com desdém. E, de repente, Beirute Ocidental. (...)
Conta-me S., em Beirute Ocidental, após a chegada dos israelitas: "Caíra a noite, deviam ser dezanove horas. De repente, uma grande barulheira de ferros, ferros e mais ferros. Toda a gente, eu, a minha irmã, o meu cunhado, corre à varanda. Noite de breu. De tempos a tempos, uma espécie de relâmpagos, a menos de cem metros. Como sabes, quase à nossa frente há uma espécie de P.C. israelita: quatro tanques, uma casa ocupada por soldados e oficiais, e sentinelas. O escuro. E o barulho da ferragem a aproximar-se. Os relâmpagos: umas tochas acesas. E quarenta ou cinquenta garotos dos seus doze ou treze anos a baterem em cadência nuns pequenos ferros, uns com pedras, outros com martelos ou qualquer outra coisa. Gritavam e ritmavam com força: La illah illah Allah, Lá Kataeb wa yahud. (Só Deus é Deus. Não aos Kataeb, não aos Judeus.)"

Jean Genet, Quatro Horas em Chatila, trad. Luiza Neto Jorge

Fragmento XC

A defesa dos interesses nacionais justifica tudo: a dedicação dos operários (manuais e intelectuais), o sacrifício e até a vida dos homens, mulheres, velhos e crianças. Actualmente, a nação sobrevive, postumamente, por similitude simbiótica com um ante-pós aprioristicamente constituído. A sociedade pós-industrial ou pós-moderna pode ser plural, mas a nação como a mãe há só uma: a nossa e mais nenhuma. Uns são filhos da puta, outros são bastardos, poucos são os queridinhos da mamã, muitos são à nascença abandonados, alguns são adoptados, a maioria não se rala que não vale mesmo a pena.
Catarina Tao Tao, Deambulações Virtuais

Friday, May 23, 2008

Franz Kafka (1883-1924)

Colecta Literária* 8 (Franz Kafka)

Qualquer homem é particular e, em virtude da sua particularidade, chamado a agir, desde que tome gosto na sua particularidade. Na escola como em casa, tanto quanto tive experiência, trabalhava-se para delir a particularidade. Era tornar a educação mais fácil, mais fácil também a vida da criança; é verdade que lhe era necessário saborear em primeiro lugar a dor que provoca a sujeição. Não se fará nunca compreender a um rapaz, à noite, quando está no melhor de uma história cativante, nunca se lhe fará compreender por uma demonstração limitada a ele próprio que é necessário interromper a leitura e ir-se deitar. Diziam-me em semelhante caso que se fazia tarde, que estragava a vista, que o meu despertar na manhã seguinte seria penoso, que essa medíocre e estúpida leitura não valia a pena, o que não podia contradizer expressamente, porque,em suma, nada disso atingia sequer os confins do que merece reflexão. Tudo era infinito, tudo se perdia no indeterminado de tal modo que podíamos identificar este todo com o infinito. O tempo era infinito, não podia portanto fazer-se tarde, o poder da minha vista era infinito, não podia portanto esgotá-lo, a própria noite era infinita, não havia portanto necessidade alguma de me inquietar com o levantar matinal; e quanto aos livros, não os distinguia de acordo com a estupidez ou a inteligência, mas conforme me cativavam ou não, ora este cativava-me. Tudo isso não o podia exprimir assim, mas sucedia que à força de suplicar que me fizessem o favor de me permitir prolongar a leitura, me tornava importuno ou decidia prosseguir a leitura sem consentimento. Tal era a minha particularidade.
Franz Kafka, Antologia de Páginas Íntimas, trad. Alfredo Margarido.

Fragmento II

É verdade ou é mentira?
Sabes alguma coisa que eu não sei?
Sabes alguma coisa que eu deva saber?
Eu faço de conta que não sei de nada
mas há algo que não consigo perceber.

Fazem um esforço louco para eu ser
quem eles querem que eu seja
mas eu não sei quem sou ou quero ser.

Balali, Presídio Infantil, s/d.

Wednesday, May 21, 2008

Tobias Hume -'Touch me Lightly' c1620

Fragmento LXXXVII

No meu jardim nascem rosas
que desdenham das fúrias do mar.
São calmas, são pacíficas,
são caladas.
Crescem com o beijo do vento,
desfalecem à noite, ao luar.

Tuesday, May 20, 2008

Travadinha

Monday, May 19, 2008

Deserto do Saara

Fragmento XXXII

Fui, outrora, a rainha bem amada
de um oculto império desaparecido na noite.
Nas minhas mãos as serpentes faziam-se aves
e os animais selvagens aquietavam-se
como cordeiros de pêlo macio.
Usurparam o meu trono,
condenaram-me ao exílio.
Dentro dos meus cornos de princesa parida
em noite de tempestade,
sopra o vento frio do Norte,
gelada e estéril mantém-se a terra.
O sabor da erva ou a aragem fresca da Primavera
não chegam até mim.
Sê benévolo, estrangeiro. Não te exasperes.
Não sou, nunca fui senão uma árvore louca.

Saturday, May 17, 2008

Fragmento XXIX

Quando eu era menina nada me despertava tanto a curiosidade como os longos e sombrios corredores do prédio de vários andares onde eu habitava. Vezes sem conta subia os vários lances de escadas (não havia elevador) para vagarosamente percorrê-los, parando alguns segundos em cada porta, na esperança de ouvir algum ruído que denotasse presença ou que alguém, inesperadamente, abrisse a porta.
Esses corredores obscuros desafiavam a minha imaginação como um enigma que por força, um dia, eu teria que desvendar.
Nada era para mim tão misterioso como essas portas obstinadamente fechadas. Nem mesmo o olímpico céu onde Deus reinava, sentado num trono, entre as nuvens, rodeado pela família de anjos e santos era para mim tão irreal. Nem mesmo o inferno, eternamente em chamas onde eram lançados os condenados em tribunal inquisitório era tão absurdo. Antes pelo contrário, inscreviam-se na ordem lógica do meu mundo, eram o argumento irrefutável de que a Lei existia e era para ser cumprida, o que eu fazia com amor e temeroso abandono e por vezes alguma revolta.
Mas os corredores vazios,as portas cerradas fascinavam-me como um mundo outro, um mundo radicalmente desconhecido.
Um dia mais tarde, eu sabia, eu tocaria à campainha e uma mulher vestida de negro, sem rosto e sem idade, abriria a porta.
- Tão tarde, minha querida! Por onde andaste? Há muito que estava à tua espera.
Justamente as palavras que eu mais temia. Que lhe responderia? Que faria? Não sabia.
E como uma esposa de Barba Ruiva, precocemente prudente e sábia, evitava bater à porta, denunciar-me por algum modo.
Do outro lado, invisível reinava a Morte e eu não queria morrer ali. Aliás, não queria morrer fosse onde fosse e ocultava-me na sombra, invisível para todos e como todos também invisível para mim.
Narciza Felizarda, Crónicas de Antanho.

Friday, May 16, 2008

Brancis Bacon, Auto-Retrato

Colecta Literária* 7 (Bernardo Soares)

Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já não o tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã, senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua mas não o texto.
Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular - jardim público ao quase crepúsculo - sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores pelo céu velho onde as estrelas recomeçam.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego, 13-6-1930

Fragmento XVI

Sabes, não sabes?
Da chave que não existia,
dos vidros partidos,
do cofre saqueado,
do amor abandonado,
das cicatrizes,
do encontro, do desencontro,
da partida sem caminho de regresso.
Através da chuva, através do vento,
através da noite, através do tempo,
a vida e a morte caminham unidas
e em cada passo,
as vigas esboroam-se,
o tecto vacila,
a casa tomba.

Wednesday, May 14, 2008

Pede o RAA que me defina em seis palavras e uma imagem. Vou tentar:
















Van Gogh, Campo de Girassóis
Sou preguiçosa por convicção política, desorganizada por sistema, curiosa por emotividade, leitora compulsiva, remediada crónica sem cura, apaixonada pela vida.
Não sei se gosto de mim, às vezes sim, outras vezes não.

Tuesday, May 13, 2008

BBEM - Lavrio - Ancient theater

O Sonho de Uma Sombra

A sorte dos mortais
cresce num só momento;
e um só momento basta
para a lançar por terra,
quando o cruel destino
a venha sacudir.

Efêmeros! que somos?
que não somos? O homem
é o sonho de uma sombra.
Mas quando os deuses lançam
sôbre êle a sua luz,
claro esplendor o envolve
e doce é então a vida.

Píndaro, Trad. Péricles Eugénio da Silva Ramos

Lux In Tenebris



Papsístratos, s/d.

Sunday, May 11, 2008

Maria Severa por Júlio de Sousa e Costa

Argentina Santos canta "Maria Severa"

Fragmento XVIII

Morreu Maria Severa,
aventureira e boémia.
Que tragédia!

Mulher de vida vadia,
entretinha as más línguas,
beberricava aguardente,
mascava tabaco,
fazia teatro e cantava o fado.
Vendia sonhos ao desbarato.

A sua voz enrouquecida,
soava triste e dolente,
entre violas e guitarras
nos becos e vielas de Lisboa,
rumo ao cais e às trevas,
ao incógnito rio negro,
arabesco de nankin e noite
entre o céu e o fim,
o abismo e o recomeço.

Wednesday, May 07, 2008

Pavana muy llana para tañer, Diego Pisador (Salamanca, 1552)

Alminha, Videmonte, Serra da Estrela

Fragmento XLXX

Todos os dias eu regresso,
parto e divido-me,
entre um dragão de boca cheia
e uma lady de olhos tristes.
Ela vem sorridente, ´
vestida de azul e estrelas.
Ele bate com os pés
e solta gritos estridentes.

Eu sou a criança perdida
entre dois mundos.
Entre sonhos e vigílias esperando,
a aparição divina e surpreendente,
o coração aberto, a lâmina afiada,
rei ou mendigo,
salpicado de lama
ou coberto de honrarias,
um pai, um irmão, um filho,
um louco, um bastardo, um pária,
mestre de solfejo, cambista ou ourives,
que me diga por que estou triste
e me ensine a ser feliz.

Saturday, May 03, 2008

Auto-retrato de Teixeira de Pascoes (1877-1952)

A Boa Nova (excertos), Teixeira de Pascoaes

Já partira, contente, o bom pastor,
Levando a boa nova aos companheiros.
Ia através de vales e de montes,
E de escabrosos, íngremes, outeiros.

(...)

"Sede os primeiros
A ouvir a boa nova, meus amigos!

(...)

Vereis, maravilhados, dentro em pouco,
Surgir, ébria de luz e de mistério,
Nova estrela do novo nascimento.
E, então, os vossos olhos encantados
Hão-de ver, hão-de ver a nova estrela!
As águas hão de vê-la e os arvoredos,
Os rebanhos e os lobos hão-de vê-la!
É ela que vem ao mundo anunciar
O novo Deus menino, o redentor
De quem andou, perdido, no alto mar!
E, de cansado, quase morto, dorme
Sobre a praia, onde as ondas o arrastaram;
E donde, em outra idade, as mesmas ondas
Em seus líquidos braços o levaram,
Através de borrascas e relâmpagos!

"Dorme, dorme cansado... Em torno dele,
Paira faminto corvo carniceiro...
Beija-lhes os pés a espuma... E ao longe, ao longe,
Nasce a eterna manhã de nevoeiro...

Teixeira de Pascoaes, Marânus.

Fragmento LXXIX

Admiro os poetas de têmpera rija e versos tenros como Teixeira de Pascoaes. Mas, não pertenço à estirpe dos profetas, daqueles que mantêm aceso o altar da pátria. Antes confesso sou da raça dos malditos, dos anti-heróis, dos espectadores do destino. Assistente assíduo no Coliseu, no Circo, no Teatro, canibal, misturado com a multidão ofegante, cheirando a suor, farejando o sangue, observo, embevecido ou estarrecido e às vezes impassível, a oficina da carne, o combate emperdenido e fatal entre deus e a besta humana. No circo, o animal ainda vivo não é senão metáfora do espírito, oferta e sacrifício no ofício divino, que o poeta canta e celebra com palavras efémeras de sangue e cimento, promessas por cumprir de eternidade.
Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias.

Tuesday, April 29, 2008

Foyse gastamdo a esperança, cantiga portuguesa, séc. XVI

S. Francisco Xavier, arte namban

Colecta Literária * 6 (Fernão Mendes Pinto)

E tomãdo por principio desta minha peregrinação o q passey neste Reyno, digo q despois que passei a vida atê idade de dez ou doze annnos na miseria & estreiteza da pobre casa de meu pay na villa de Montemór o velho hum tio meu, parece que desejoso de me encaminhar para milhor fortuna, me trouxe a cidade de Lisboa, & me pos no serviço de hûa senhora de geração assaz nobre, & de parentes assaz illustres, parecedolhe que pella valia assi della como delles poderia aver effeito o q elle pretendia para mim. E isto era no tempo em q na mesma cidade de Lisboa se quebrarão os escudos pella morte del Rey dom Manoel da gloriosa memória, que foy em dia de santa Luzia treze dias do mes de Dezebro do anno de 1521. de q eu sou be lebrado, & doutra coisa mais antigua deste reyno me não lebro.
Peregrinaçam, ed. conforme a de 1614, Portucalense Editora.

Monday, April 28, 2008

Poema Zen, Ikkyu

Os convidados partiram,
a música parou,
não há sons;
Não se pode dizer
quando acordará ela
do profundo sono.
Enquanto olho,
uma borboleta volteia.
Escuta, o sino bate
a meia-noite ao meio-dia.

Fragmento LXXXVIII

Quanto te vejo
sinto fluir nas veias
a respiração das algas,
aquieto-me,
perco a memória,
não consigo soletrar os s.
Uma grande estupidez invade
por dentro os meus sentidos
e mente.
Confundo tudo.
Acredito até que te conheço desde sempre.
Verdadeiramente estranho.
Onde foi que nos encontrámos?

Sakamoto Ryuichi, Merry Christmas Mr. Lawrence (Live)

Colecta Literária* 5 (Shusaku Endo)

"Estou pronto para morrer se é esse o Vosso desejo", pensou o missionário, erguendo orgulhosamente a cabeça como um falcão,"mas Vós sabeis como precisa de mim a Igreja no Japão. Sim. Assim como os governantes desta nação precisam dos meus serviços, também o Senhor precisa de mim". Um sorriso triunfante abriu-se-lhe no rosto. O missionário confiava nas suas próprias capacidades. Como provincial de Edo da Ordem Franciscana, considerava sempre que o insucesso do trabalho dos missionários no Japão resultava dos graves erros cometidos pela Companhia de Jesus, que permanentemente se opunham aos Franciscanos. Apesar de os Jesuítas se empenharem vigorosamente como políticos nos assuntos mais triviais, na realidade não entendiam nada de política. Após seis anos de evangelização, tinham construído igrejas em Nagasáqui com autoridade administrativa e canónica autónoma, semeando as sementes da desconfiança no espírito das autoridades japonesas.
"Fosse eu bispo, não teria cometido tamanha estupidez. Tivesse eu sido bispo do Japão..."
Samurai, trad. José-Pedro Gonçalves.

Friday, April 25, 2008

Michio Miyagi, "Haru no umi"

Nagisa Oshima, "The Man Who Left His Will on Film" (1970) [Trailer],

Colecta Literária* 4 (Yukio Mishima)

Todas essas coisas, claro, tinham sido pressentidas, e eu sabia também que as condições básicas para esta existência imperativa eram o "absoluto" e o "trágico". A morte começou quando me determinei atingir uma existência além daquela que as palavras proporcionavam. Por mais destrutivo que fosse o aspecto assumido pelas palavras, elas estavam profundamente enraizadas no meu instinto de sobrevivência, parte da minha própria vida. Quando foi a primeira vez, realmente, que senti o desejo de usar palavras, a não ser quando senti, deveras, o desejo de viver? Eram as palavras que me permitiriam continuar vivendo, até que eu morresse de morte natural; elas eram os germes vagarosos de "uma doença que leva à morte".
Sol e Aço, trad. Paulo Leminski

Wednesday, April 23, 2008

Pinturas de Hokusai e Música Edo

Provérbios e Outros Ditos

Há um provérbio japonês, de inspiração budística, que diz assim:

Au wa wakaré no hajimé.
(...)
O encontro é o começo da separação.
Wenceslau de Moraes, Ó - Yoné e Ho - Karu

Friday, April 18, 2008

Ode, Ricardo Reis, 1916

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

Notícia de Última Hora

A grande imperatriz do fado, Luzia Desdemonia Tzíngara, regressou hoje,13 de Junho, ao rincão natal.
A cantora, à chegada ao aeroporto da Portela, confessa à imprensa que durante o seu prolongado exílio no Japão sonhava, ininterruptamente, com o seu regresso à terra pátria, ocidente do ocidente.
Trajando um simples fato de burel, cinzelado com grande arte, Luzia declarou em confidência descarada aos jornalistas: "A minha alma está enterrada nesta cidade. Venho em peregrinação ao túmulo do meu pai. Encontrei todas as portas fechadas." Indagada sobre a sua participação no show de variedades: O Arrependimento da Filha Pródiga, previsto pela organização de Festas da Cidade, a artista diz não ter ainda chegado a nenhum acordo com os promotores do evento.
S.E.C., além de doutor em matemática, um dos mais potentes comentadores da actualidade, refere-se à voz da cantora como uma das mais puras expressões da elegibilidade da alma portuguesa - "archeologia do substractum ancestral" - eis como ele define em análise aturada, a letra e o espírito que soberanejam à cabeça do grande corpo de música desse animal falante que é língua portuguesa, poesia que a cantora mastiga em grandes sorvos. "Vivamente impressionado" - diz o crítico - "pela poderosa eloquência da grande fadista, mal solfejo as notas avulsas de um hino de gratidão (que o coração cala, mas a boca articula): belíssimo! super! indizível! É este o canto que avassala o homem. É o coração, grande motor, triunfando da inteligência, impávida meretriz."
"Que diabo diz ele?" perguntamo-nos todos. "Não se percebe tostão!".
Em confissão pungente prossegue a cantora: "Imaginai quão doloroso seria um definitivo adeus à pátria, onde acoimaram-me de maluca e pedinte! Eu não deixaria este país, em particular, Lisboa, onde para sempre perdi as doces e efémeras ilusões da minha juventude, agora fanada, sem estas últimas gotas baptismais com que vos salpico a mioleira."
"Que balde de água fria!": comentamos todos, entreolhando-nos.
"Porém, Deus é testemunha",continuou a artista, "eu corria atrás do meu destino. Hoje, liberta da tirania do destino, plenamente identificada com o meu destino, afirmo com a coragem que dá a lucidez sacrossanta dos vencidos: não sinto alegria em vos deixar! Não fertilizarei o solo de estranhas praias com os miosótis da amizade com que fui aqui, por alguns, festejada. A vós, queridas que tendes o coração mais doce que melaço! A vós, doutores, que vos refastelais em poltronas milenárias...rendo hoje o preito da minha mais sincera homenagem!".
Nós e a República Portuguesa, Cadernos de Divulgação Cultural,Ed. Caixa de Pandora, s.d.

Sunday, April 13, 2008

Ai Mouraria , Amália no Coliseu dos Recreios 1982

Mapa de Portugale


http://porto.taf.net

Framento LXIII

O mundo esquadriado das fronteiras políticas muda todos os dias. Democraticamente, felicito o nascimento regular de novas nações. Hoje, o Kosovo, amanhã o País Basco, depois de amanhã, a Madeira. E espero ainda ver um dia renascer a minha pátria de antanho - Portugale. Como soberanamente afirma um dos meus sobrinhos: "O Porto é uma nação! Só não vê quem não quer."
Biba o Porto camiliano das raízes e das tripas! Biba Portugale! Biba o Jardim da Madeira! (Olhó Tesão!)Biba! Biba! Biba!
Quanto a essa francesinha pretenciosa, desenxabida e sem picante no molho, a capital do outrora luso império, a bela, a opulenta, a cidade de Lisboa, dela me despeço com um fadinho:
Lisboa, bela e severa,
Lisboa, tirana linda,
Lisboa tens mais encantos na hora da despedida!

Catarina Tao Tao, Deambulações Virtuais

Saturday, April 12, 2008

Philip Glass Ensemble, "Train/Spaceship"

Fragmento LXXIV

Papai, eu quero de presente uma barquita
com dois pássaros e um mastro verde.
Dá-me as mãos, os pés e beijos, nós de corda,
para que eu possa destruir o medo
que me corta a respiração e o sono
e me impede os gestos de ternura e espanto:
eu vivo e tu existes!
Só para te dizer que te amo,
passados todos estes anos.
Descobri-o, ontem, vasculhando o sótão
e encontrando elos perdidos:
as sandálias brancas que me ofereceste
no dia da expedição ao aeroporto.
As naves de aço que partiam
lançavam no céu moroso e belo,
o sol vibrante, manchas de fumo azul,
cavalos de sonho, fugidios e velozes,
galopando no espaço urbano.

Thursday, April 10, 2008

Nuvem Passageira versão 2

Fragmento XLX

Foi assim a minha passagem
pela tua vida de marinheiro,
prisioneiro do mar, fugitivo da terra:
fugaz e ligeira,
carícia breve, ténue cilício,
um aroma leve e delicado
que se esvaiu no céu azul.

Wednesday, April 09, 2008

Marília Vargas canta Villa Lobos - Bachianas nº5

Primavera (1458), Botticelli

Colecta Literária* 3 (Leão Tolstoi)

No mês de Junho, ao voltar para casa, atravessou de novo a floresta das bétulas. Os guizos dos cavalos ouviam-se aí mais surdamente do que seis semanas antes. Tudo estava espesso, copado, sombrio. (...)
O dia estava quente, havia tempestade no ar; uma pequena nuvem negra regou o pó do caminho e a erva do fosso: o lado esquerdo do bosque continuava na sombra, o lado direito, apenas agitado pelo vento, cintilava todo molhado ao sol: tudo florescia e, de perto e de longe, os rouxinóis gorgeavam.
"Parece-me que havia aqui um carvalho que me compreendia", disse consigo o príncipe André, olhando para a esquerda e atraído contra vontade pela beleza da árvore que procurava. O velho carvalho transformado estendia-se numa cúpula de verdura carregada, luxuriante, desabrochada, que se baloiçava, sob o sopro de uma ligeira brisa, aos raios do sol poente. Não se viam já ramos recurvados, nem contusões: não havia já na sua aparência nem amarga desconfiança, nem sombrio pesar, nada mais do que as folhas novas cheias de seiva que haviam furado uma casca secular, e perguntávamo-nos com surpresa se fora aquele patriarca que lhes dera a vida!
"Sim , é ele!" exlamou o príncipe André, e sentiu o coração inundado de alegria intensa que lhe traziam a Primavera e aquela vida nova. As recordações mais íntimas, as mais queridas da sua existência, deslizaram diante de si. (...)
Muitas vezes, passeava no gabinete, com as mãos cruzadas atrás das costas, sorrindo às suas visões confusas e desconexas, a Pedro, à jovem da janela, ao carvalho, à glória, à beleza da mulher, ao amor que faltara à sua vida!
Guerra e Paz, Ed. Minerva

Fragmento LXXVIII

Eis-me chegado ao cume da montanha. Diante de mim estende-se o mundo como uma paisagem entreaberta para o futuro. Amanhece, o orvalho rebrilha, iluminado pelo sol que se ergue no horizonte. Inesperadamente, surge uma rapariga. Vem vestida de verde e traz uma grinalda de flores entre os cabelos. Repentinamente, ela chega. Bruscamente, eu parto.
Mais vale o conforto de uma velhice sossegada do que os sobressaltos e os arroubos de uma amante jovem e caprichosa.

Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias

Tuesday, April 08, 2008

O Sonho de Constantino, Piero della Francesa (1416-1492)



In Hoc Signo Vinces
Não basta sonhar é preciso interpretar os nossos sonhos, tarefa complicada e sujeita a múltiplos enganos. Constantino sonhou que ganhava a batalha da Ponte Mílvio. O imperador venceu, de facto, a peleja, mas o império soçobrou. Ironia do destino, certamente. A Igreja herdou e assumiu a águia e as garras do império romano e o papa, pastoreia, com astúcia e manha, o seu rebanho. Avé César!

Colecta Literária*2 (António Sérgio)

O aceitarmos (mais: o desejarmos, até) que colaborem connosco na remodelação económica indivíduos animados de sentimento religioso (de verdadeiro sentimento religioso, acompanhado, ou não de religião positiva) não contradiz em nós a rejeição completa, para uso próprio, da parte dogmática e ritual de todas as religiões positivas que possa haver; nem a nossa profundíssima antipatia pelos aspectos políticos anticristãos que se topam na história da Igreja Católica e nas almas da maioria dos católicos; nem, ainda, a nossa intensíssima repulsa à intromissão do clero na política. É a esta intromissão que nós damos o nome de clericalismo; e o nosso anticlericalismo (que temos motivos para crer maior que o dos outros anticlericais de Portugal) não degenera em ódio à religião, nem se confunde com o ódio à religião. Na história da Igreja, abominamos tudo o que contraria o preceito de separar o que é de Deus do que é de César.
"Anotações",Introdução Geográfico-Sociológica à HIstória de Portugal.

Sunday, April 06, 2008

Albinoni: Adagio in G Minor

Fragmento XXXIX

Homens, caminhos e rios
estranhos vão se tornando,
à medida que o tempo avança,
procurando pela foz,
a aquietação imensa,
o universo eterno e sem retorno.

Thursday, April 03, 2008

António Sérgio, 1883-1969

Colecta Literária * 1 (António Sérgio)

Medo de quê? Medo de quem? Medo? De muitas pessoas e de muitas coisas: mas medo, principalmente, do tão lugúbre fantasma agitador de insónias que nos traz mais angústias do que a própria morte: a perseguição económica. A ameaça da fome para a mulher e os filhos. Pavor dessa Fúria que se chama mendiguez e penúria, e que impeliu de abalada os tais portugueses de outrora (de que Vossa Excelência nos fala), os quais foram estrelando toda a superfície do Oceano com as esteiras espumantes das nossas quilhas, tornando esta Grei uma grande constelação de colónias, "pelo Mundo em pedaços repartida"... Medo de quê? Medo de quem?... Ah, Senhor Ministro: não me sobra o espaço para lho explicar por miúdos. E porque também tenho medo de ir prejudicar muita gente se tivesse a ousadia de concretizar o assunto, de traçar uma lista de alguns casos típicos (a palavra «lista», em Portugal, causa medo)eu tenho de limitar-me a requerer-lhe um inquérito, acompanhado da promessa de que não será perseguido quem quer que se apresente a testemunhar no assunto.

António Sérgio, "Resposta a um apelo e a uma pergunta de sua excelência o Ministro do Interior", República, 3-11-1953.

Fragmento XXXIV

Os Portugueses têm medo?
Pois, D. Sebastião dizia que não tinha. Contra tudo e todos foi para o Norte de Àfrica e se ainda não anda em peregrinação pelo mundo por lá ficou. Os portugueses é que nunca mais lhe puseram a vista em cima. Pelo menos com vida, diz-se.
Conta-se também que D. Sebastião perguntou uma vez ao duque de Alba se sabia de que cor era o medo. Respondeu-lhe o velho general da outra banda da Ibéria que o medo tinha a cor da prudência.
D. Sebastião não lhe deu importância. Era jovem,impetuoso e cheio de bazófia e medo partiu. O resto da narrativa todos conhecem.
Moral da história: quando temos medo devemos ser prudentes e não fugir para a frente como fez D. Sebastião.

Joana Papa-Léguas, Historietas de encantar e outras fábulas

Wednesday, April 02, 2008

Absurda - David Lynch

Fragmento XVIII

Era até uma rapariga conversadora se lhe dessem trela. Qualquer pretexto servia-lhe de tema quer se tratasse de um acordo político entre nações, o engate do vizinho ou a consumição por causa da mãe sempre doente. As suas palavras nunca deixavam rasto como se se esgotassem no próprio acto de dizê-las.
Jamais agia gratuitamente. Tinha sempre diante de si, omnipresente, aquilo que os hindus designam por karma, ou seja o tropel inelutável das consequências que um simples gesto ou pensamento pode desencadear, o que em termos científicos vulgarmente se designa por efeito borboleta: um insecto que abre as asas em Nova Iorque desencadeará por concatenação de causas e efeitos um tsunami na China.
Na infância vivera numa redoma fechada e vedada à vida e a representação que construíra de si própria era irreal como uma imagem reflectida em águas paradas. Postava-se diante do espelho envolvida em lençóis brancos e sonhava…
Era sujeita a frequentes dores de cabeça cuja origem não discernia e suspeitava vagamente dos seus sentimentos que contrariava por educação.Tinha lampejos de verdadeira crueldade e não se sabia maldosa. Agia por impulsos, sacudidamente, sem pensar. O pensar, um pensar autónomo que exigisse algum esforço de concentração era completamente adverso ao seu carácter manso e cordato à superfície. Era tímida, o que contrariava a sua ânsia infantil de desmedido e grandeza.
Aos quinze anos, desejou ter uma alma elevada, à medida das suas ambições e passou a controlar e contrariar os seus apetites toscos. Assimilara as suas normas de comportamento nas obras dos românticos, Walter Scott ou qualquer outro inglês oitocentista, romances que lhe agradavam tanto como as aventuras de Júlio Verne ou os relatos fantásticos de Jonathan Swift. Tais escapadelas ao mundo da ficção, somados aos seus infindáveis devaneios foram-lhe fatais, ou para utilizar um dos instrumentos da parafernália romântica, funestos. A fatalidade, aliás, estava-lhe no sangue. Não era a vida fatal para todos?
Durante algum tempo, entreteve-se escrevendo um diário, mas depressa desistiu da empresa. Ocorria-lhe apenas relatar coisas banais, a maneira como as amigas se vestiam, o olhar um pouco mais demorado que algum rapaz lhe dedicara, coisas de menina, nada das emoções sobressaltadas que a sua imaginação lhe sugeria. Não fazia a mínima ideia do que queria e a vida quotidiana aborrecia-a.
Tinha a tez pálida dos citadinos, cabelos negros e lisos, era magra e um aspecto simultaneamente tosco e atraente como uma obra incompleta que pedisse mãos de artista. Vestia-se mal e despreocupadamente. Às vezes tinha veleidades de menina caprichosa e gostava de aparecer com velhos chapéus e colares comprados na feira da Ladra, lembranças perdidas de tias que nunca tivera. Sentia em si vagamente um grande talento de actriz e, inconscientemente, reproduzia sem cálculo, aquilo que a imaginação ávida fixara e que depois esquecia. Esse enorme vácuo que parecia ser o cerne da sua personalidade era continuamente alimentado por novas imagens. Entrava facilmente em depressão e permanecia durante horas, absorta, olhando para o vazio, ouvindo vagamente as vozes discordantes dos seus pensamentos ou tentando localizar as sensações estranhas e desconhecidas que como nuvens corriam pelo seu cérebro, mas que não identificava consigo própria. Aliás ser ela própria não era o mais importante. O importante era sempre a impressão que poderia causar nos outros. No fundo a sua vida não fazia sentido e ela sabia-o. Por isso disfarçava e fingia. Continuamente, parar era impossível, significaria o colapso mortal do seu sistema de vida.
Suicidou-se, ainda jovem, aos trinta e dois anos, ao som das bombas que rebentavam em Lisboa, corria o ano de 1923, numa noite límpida de Março. Paz à sua alma.

Sunday, March 30, 2008

Erasmo de Roterdão, 1466-1536

Colecta Literária

XXXI. - Parece-me que alguém que olhe do alto a vida humana, como o Júpiter das fábulas e dos poetas o faz por vezes, e observe a quantidade de males que se abatem sobre o género humano, o seu nascimento humilhante, a educação difícil, os perigos que rodeiam a infância, os duros trabalhos impostos à juventude, a velhice penosa e, depois de inúmeras doenças e males, de incómodos que de todos os lados o perseguem e envenenam o dia-a-dia, por fim a dura necessidade da morte.
Não falemos já do mal que o homem faz ao homem: a ruína, o cárcere, a desonra, a tortura, as ciladas, as traições. Enumerar tudo isto, os ultrajes, os pleitos, as fraudes, seria como contar os grãos de areia à beira-mar.
Erasmo, Elogio da Loucura

Fragmento LXXXIII

Não aprendi grego nem latim, o que considero uma falha grave numa educação esmerada. Pelo menos para mim que sou por vocação e missão um humanista. Um humanista não é antigo nem moderno. Está para além do tempo. É um clássico e por isso inventou os clássicos. Verdadeiramente não cria nem destrói, conserva, lança pontes que religam o Homem ao Homem através dos tempos.
Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias

Saturday, March 29, 2008

António Aleixo, 1899-1949

Quadra de António Aleixo

Porque será que nós temos
na frente, aos montes, aos molhos,
tantas coisas que não vemos
nem mesmo diante dos olhos?

Fragmento VII

Antes queria uma pedra
por pequenina que fosse,
que ao bem mais precioso.
Mesmo a rosa mais bela
encerra a dor nas suas pétalas.

O poeta sabe que em breve
a flor será murcha e morta
enquanto a pedra
como a palavra permanece,
imóvel e silenciosa, à espera.

Wednesday, March 26, 2008

Bach's "little" fugue

A Fonte, Marcel Duchamp, 1917











Não será uma bela imagem mas é certamente uma imagem sensível. Tão sensorial e forte como um murro no estômago. Seria risível se não fosse obscena na sua "linguagem pura", na sua evidência transparente de objecto infinitamente reprodutível. Ad nauseam.

Segundo a Mãe

Cada um de nós traz em si uma imagem da mulher baseada na ideia que se tem da nossa mãe: é por isso que se é determinado a respeitar as mulheres em geral ou a desprezá-las ou a ser totalmente indiferente a seu respeito.
Nietzsche, Humano, demasiado Humano, 380

Fragmento LXXXVI

O pequeno ilícito, o pequeno crime dentro de portas, a violência escondida sob os brandos costumes, tão useiros e vezeiros que ninguém dá por nada... Deverei nomeá-lo? Seria pecado. Não me atrevo a tanto!
Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias

Monday, March 24, 2008

Mafalda, Quino

Sunday, March 23, 2008

Fragmento VIII

O olho de Habakuk espreita
através do solstício de Verão.
A vida é perfeita:
céu azul, pássaros,
violetas, figos maduros,
o canto acidulado das cigarras.
Se uma ou outra sombra assoma
vinda do nada
mando-a embora. Digo-lhe:
- Agora não! Agora não!
É tarde. Estou cansada.

Saturday, March 22, 2008

Frida Kahlo, Thinking of Death, 1943

Aimer à en mourir

Quando cheguei à tua casa tinha os pés ensanguentados e as asas partidas. Trataste de mim com carinho infinito. Quando te mordi ao me tocares, apenas porque doía, todo o meu corpo doía, não me rejeitaste. Fizeste-me sentar à tua mesa e ofereceste-me um banquete como se eu fosse uma princesa. Lentamente, despedaço a minha alma para te amar melhor. Ontem despi a minha couraça de silêncio. Esta noite arranquei um olho. Sinto-me feliz porque sei que me observas e que a tua pele se torna mais transparente e os teus olhos mais luminosos. Quando te aproximas afastas as nuvens de hipocrisia, a casa vendida aos mercadores. Enches o meu bornel de pedinte com pedras preciosas e fragâncias delicadas e a minha alma está repleta do desejo de beleza.
O meu coração era um cofre selado mas encontraste a chave e não consigo seguir viagem. Ouço o murmúrio do vento que me chama e incita para que parta, mas os meus pés criaram raízes à tua porta e com vertigens de volúpia e medo abandono-me nas tuas mãos e sinto que a felicidade habita no teu nome.

Friday, March 21, 2008

Fragmento LXXXII

Quando eu for grande quero ter uma saia muito comprida, pelo menos até aos pés, uns sapatos de verniz com tacão de cinco dedos, umas luvas, um lenço branco de cambraia, uma bolsinha de madrepérola, uma pulseira de pechisbeque e uma borboleta pousada na mão. Prós meus dentinhos gelado de baunilha, amêndoas de Páscoa e cerejas no Verão. E talvez também de certeza um alguidar com água e sabão e uma palheta para mandar pelo ar muitas bolhinhas redondinhas... tchuac, tchuac, tchuac...

Thursday, March 20, 2008

Malevich, Branco sobre Branco, 1918

Fragmento XLVI

O branco tão belo como o silêncio, a infância, a inocência, a neve cristalizada em gelo!

Wednesday, March 19, 2008

Monarquia ou República?

Artur Bivar, em directo

Eu caro camarada, antes de te pedir um favor, preciso de te dizer quem sou. Sou um portuguez, nascido em Villa Viçosa, e baptizado na parochial egreja de S. Bartholomeu (em cujo dia anda o diabo à solta), - por um padre que se chamava Rocha Espanca, - circunstancias que pareciam já annunciar a minha futura missão de espancador de quantos diabos andassem à solta n'esse paiz. Assim o fiz até fevereiro de 1911, data em que fui preso por ter abanado os fundamentos da republica, recem-nascida, com um boato propalado n'um dos carros do Bom Jesus veneraveis precursores (que por signal pouco corriam) dos electricos em que ainda não puz a vista, para não dizer outra coisa.
Sou monarchico, unicamente por não poder ser republicano, com semilhante republica.
Echos do Minho, 5 de Janeiro de 1919.

Fragmento XXXVIIII

Monarquia ou República? Questão política que envolve muitas outras de carácter bem mais complexo. Estado confessional ou Estado laico? Ao Estado compete gerir o património e o serviço público sem se intrometer nas questões religiosas de foro exclusivamente privado. Nem sempre assim aconteceu, infelizmente para o rei D. Carlos e o príncipe Luís Filipe. E por não ter quem lhe acudisse foi para o exílio D. Manuel II, o último rei português.
Artur Bívar, jornalista valente, monárquico-católico confessado e mais católico do que português, formulou a seguinte interrogação em forma de livro: Deus adheriu? Pergunta dum monárquico catholico e resposta dum catholico monarquico a propósito do desfecho da Restauração de Janeiro (Livraria Cruz, Braga, 1919). Aquele que melhor poderia responder à pergunta que eu saiba não deu ainda qualquer solução autorizada ou definitiva. Mas todos os indícios apontam para uma resposta positiva. A mim a questão não interessa. Tanto se me deu como se me dá. Tanto me faz. Sou agnóstico convicto e maçónico (não o sendo!). Se alguma vez tivesse que professar seria certamente terçando armas pelo deus abscôndito, esse Outro desconhecido, pregado por gregos, romanos, árabes, judeus e portugueses e sobre quem Sampaio Bruno (meu patrono) tanto discorreu. Por essa razão dispenso-me (felizmente!) de perorações mais extensas e detalhadas sobre o assunto.
Leonardo Ventura, Memórias da I República Democrática.

Tuesday, March 18, 2008

Mozart, Requiem, Lacrimosa

Pietà, MIguel Ângelo, 1498

Fragmento X

No dia em que nasci
nenhuma estrela cadente
rasgou a noite,
nenhum cometa assinalou o dia.
Na cidade não houve
explosão de fogo preso.
Mas os teus olhos, Mãe,
risonhos e límpidos,
acompanharam-me sempre.

Sem ti a vida
não é dádiva, amor,
é morte antecipada,
desesperança sem sossego,
inquietação sem paz.
Sem ti a vida não faz sentido.
Sem ti eu deixo de existir.

Sunday, March 16, 2008

The Rolling Stones - I can't get no satisfaction

Fragmento LXXIII

Nunca paro para pensar. Caminho sempre em frente. Às vezes paro sem pensar e penso. Aproveito a oportunidade como uma carpa o dia. "Carpe Diem!". Paro, penso e partilho as minhas divagações vagabundeantes.
Sobre os pecados mortais do Ratzinger, acho que apresentar a pobreza extrema de uns e a riqueza escandalosa de outros como um novo pecado mortal revela no mínimo incompetência teológica. No que diz respeito à pedofilia considero-a uma extensão moderna e ocidental da antiga e universal lei do incesto. Sobre o tráfico de drogas prefiro não me manifestar. Não sei como delimitar o conceito. O açúcar é um droga? O chocolate, o tabaco, o vinho e as aspirinas também? Quanto às práticas abortivas não são recentes e, sinceramente, não sei se será maior atentado à natureza o aborto voluntário ou o celibato imposto como regra de vida. Quanto aos outros - as experiências de manipulação genética e a poluição do ambiente são de facto práticas recentes. Não me parece é que dizer que a poluição do ambiente é um pecado mortal ajude a combatê-la. Mortal será ela para o Homem se não for detida atempadamente. Quanto às experiências de manipulação genética, penso que o homem enquanto cientista ou aprendiz de feiticeiro deveria ser cuidadoso e prudente pois está a lidar com forças cujo alcance social e político são dificilmente mensuráveis ou previsíveis. Dizer que manipular é um pecado demonstra apenas uma vez mais o preconceito que a Igreja Católica sempre manifestou em relação à ciência moderna.

Catarina Tao Tao, Deambulações Virtuais

Wednesday, March 12, 2008

CASABLANCA - AS TIME GOES BY

Bocage (1765 - 1805)

Soneto, Bocage

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores;
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade;
Que elas buscam piedade, e não louvores;

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade
A curta duração dos seus favores;

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela Voz da Dependência.

Fragmento VII

As torres sineiras de Betsek al Tibir
tocaram a rebate esta manhã.
- Estudastes toda a sabatina
Flor de Lótus, Flor de Ervilha?
As crianças pasmaram!
Que alma viva ou defunta lhes falava assim!?
- De é uma partícula de ligação,
que, idém aspas, idém, ámen.
Tu é um pronome pessoal
e eu sou eu,
rodopiando nos ares, nos ventos,
nas águas, nas florestas,
nas cabeças e nos corações
dos meninos e meninas
que, de madrugada, ao romper da alva,
saem de casa para a escola,
regressando ao fim do dia,
consumidos e cansados.
- bá, bá... tá, tá, certo!
- Errado!

A professora é chata,
o paizinho dá-me porrada,
conto até três e vou-em embora.
Perto do rio há uma árvore,
uma sombra preguiçosa,
uma casa encantada
e uma fada à soleira, à minha espera.

Monday, March 10, 2008

Afonso Costa, 1871-1937

Fragmento LXXXIV

O primeiro-ministro Afonso Costa era um homem democrático, socialista de boa cepa e um líder incompreendido pelo seu povo. Tivesse ele levado a sua avante e Portugal teria remoçado, rejuvenescido à força de injecções legislativas e pílulas de adrenalina. O seu nome simbólico, digo maçónico, era Platão e enfrentava os fantasmas da caverna com coragem, determinação e inegável benevolência.
Legislador imparável, cientista social de primeira água (pois não media ele o mérito e a capacidade intelectual dos jesuítas com instrumentos de medição infalíveis e cientificamente comprovados?),enfim, um político latino janota e fogoso. Teria certamente tido futuro como político se não fosse surdo e cego a tudo aquilo que não fossem os seus objectivos estratégicos. Desiludido com a política portuguesa partiu para Paris onde foi presidente das delegações portuguesa à Conferência de Paz (1919) e presidiu à Sociedade das Nações (1926). Bendita Europa que acolhes os nossos falhados estadistas!
Leonardo Ventura, Memórias da I República Democrática