Sunday, March 30, 2008

Erasmo de Roterdão, 1466-1536

Colecta Literária

XXXI. - Parece-me que alguém que olhe do alto a vida humana, como o Júpiter das fábulas e dos poetas o faz por vezes, e observe a quantidade de males que se abatem sobre o género humano, o seu nascimento humilhante, a educação difícil, os perigos que rodeiam a infância, os duros trabalhos impostos à juventude, a velhice penosa e, depois de inúmeras doenças e males, de incómodos que de todos os lados o perseguem e envenenam o dia-a-dia, por fim a dura necessidade da morte.
Não falemos já do mal que o homem faz ao homem: a ruína, o cárcere, a desonra, a tortura, as ciladas, as traições. Enumerar tudo isto, os ultrajes, os pleitos, as fraudes, seria como contar os grãos de areia à beira-mar.
Erasmo, Elogio da Loucura

Fragmento LXXXIII

Não aprendi grego nem latim, o que considero uma falha grave numa educação esmerada. Pelo menos para mim que sou por vocação e missão um humanista. Um humanista não é antigo nem moderno. Está para além do tempo. É um clássico e por isso inventou os clássicos. Verdadeiramente não cria nem destrói, conserva, lança pontes que religam o Homem ao Homem através dos tempos.
Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias

Saturday, March 29, 2008

António Aleixo, 1899-1949

Quadra de António Aleixo

Porque será que nós temos
na frente, aos montes, aos molhos,
tantas coisas que não vemos
nem mesmo diante dos olhos?

Fragmento VII

Antes queria uma pedra
por pequenina que fosse,
que ao bem mais precioso.
Mesmo a rosa mais bela
encerra a dor nas suas pétalas.

O poeta sabe que em breve
a flor será murcha e morta
enquanto a pedra
como a palavra permanece,
imóvel e silenciosa, à espera.

Wednesday, March 26, 2008

Bach's "little" fugue

A Fonte, Marcel Duchamp, 1917











Não será uma bela imagem mas é certamente uma imagem sensível. Tão sensorial e forte como um murro no estômago. Seria risível se não fosse obscena na sua "linguagem pura", na sua evidência transparente de objecto infinitamente reprodutível. Ad nauseam.

Segundo a Mãe

Cada um de nós traz em si uma imagem da mulher baseada na ideia que se tem da nossa mãe: é por isso que se é determinado a respeitar as mulheres em geral ou a desprezá-las ou a ser totalmente indiferente a seu respeito.
Nietzsche, Humano, demasiado Humano, 380

Fragmento LXXXVI

O pequeno ilícito, o pequeno crime dentro de portas, a violência escondida sob os brandos costumes, tão useiros e vezeiros que ninguém dá por nada... Deverei nomeá-lo? Seria pecado. Não me atrevo a tanto!
Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias

Monday, March 24, 2008

Mafalda, Quino

Sunday, March 23, 2008

Fragmento VIII

O olho de Habakuk espreita
através do solstício de Verão.
A vida é perfeita:
céu azul, pássaros,
violetas, figos maduros,
o canto acidulado das cigarras.
Se uma ou outra sombra assoma
vinda do nada
mando-a embora. Digo-lhe:
- Agora não! Agora não!
É tarde. Estou cansada.

Saturday, March 22, 2008

Frida Kahlo, Thinking of Death, 1943

Aimer à en mourir

Quando cheguei à tua casa tinha os pés ensanguentados e as asas partidas. Trataste de mim com carinho infinito. Quando te mordi ao me tocares, apenas porque doía, todo o meu corpo doía, não me rejeitaste. Fizeste-me sentar à tua mesa e ofereceste-me um banquete como se eu fosse uma princesa. Lentamente, despedaço a minha alma para te amar melhor. Ontem despi a minha couraça de silêncio. Esta noite arranquei um olho. Sinto-me feliz porque sei que me observas e que a tua pele se torna mais transparente e os teus olhos mais luminosos. Quando te aproximas afastas as nuvens de hipocrisia, a casa vendida aos mercadores. Enches o meu bornel de pedinte com pedras preciosas e fragâncias delicadas e a minha alma está repleta do desejo de beleza.
O meu coração era um cofre selado mas encontraste a chave e não consigo seguir viagem. Ouço o murmúrio do vento que me chama e incita para que parta, mas os meus pés criaram raízes à tua porta e com vertigens de volúpia e medo abandono-me nas tuas mãos e sinto que a felicidade habita no teu nome.

Friday, March 21, 2008

Fragmento LXXXII

Quando eu for grande quero ter uma saia muito comprida, pelo menos até aos pés, uns sapatos de verniz com tacão de cinco dedos, umas luvas, um lenço branco de cambraia, uma bolsinha de madrepérola, uma pulseira de pechisbeque e uma borboleta pousada na mão. Prós meus dentinhos gelado de baunilha, amêndoas de Páscoa e cerejas no Verão. E talvez também de certeza um alguidar com água e sabão e uma palheta para mandar pelo ar muitas bolhinhas redondinhas... tchuac, tchuac, tchuac...

Thursday, March 20, 2008

Malevich, Branco sobre Branco, 1918

Fragmento XLVI

O branco tão belo como o silêncio, a infância, a inocência, a neve cristalizada em gelo!

Wednesday, March 19, 2008

Monarquia ou República?

Artur Bivar, em directo

Eu caro camarada, antes de te pedir um favor, preciso de te dizer quem sou. Sou um portuguez, nascido em Villa Viçosa, e baptizado na parochial egreja de S. Bartholomeu (em cujo dia anda o diabo à solta), - por um padre que se chamava Rocha Espanca, - circunstancias que pareciam já annunciar a minha futura missão de espancador de quantos diabos andassem à solta n'esse paiz. Assim o fiz até fevereiro de 1911, data em que fui preso por ter abanado os fundamentos da republica, recem-nascida, com um boato propalado n'um dos carros do Bom Jesus veneraveis precursores (que por signal pouco corriam) dos electricos em que ainda não puz a vista, para não dizer outra coisa.
Sou monarchico, unicamente por não poder ser republicano, com semilhante republica.
Echos do Minho, 5 de Janeiro de 1919.

Fragmento XXXVIIII

Monarquia ou República? Questão política que envolve muitas outras de carácter bem mais complexo. Estado confessional ou Estado laico? Ao Estado compete gerir o património e o serviço público sem se intrometer nas questões religiosas de foro exclusivamente privado. Nem sempre assim aconteceu, infelizmente para o rei D. Carlos e o príncipe Luís Filipe. E por não ter quem lhe acudisse foi para o exílio D. Manuel II, o último rei português.
Artur Bívar, jornalista valente, monárquico-católico confessado e mais católico do que português, formulou a seguinte interrogação em forma de livro: Deus adheriu? Pergunta dum monárquico catholico e resposta dum catholico monarquico a propósito do desfecho da Restauração de Janeiro (Livraria Cruz, Braga, 1919). Aquele que melhor poderia responder à pergunta que eu saiba não deu ainda qualquer solução autorizada ou definitiva. Mas todos os indícios apontam para uma resposta positiva. A mim a questão não interessa. Tanto se me deu como se me dá. Tanto me faz. Sou agnóstico convicto e maçónico (não o sendo!). Se alguma vez tivesse que professar seria certamente terçando armas pelo deus abscôndito, esse Outro desconhecido, pregado por gregos, romanos, árabes, judeus e portugueses e sobre quem Sampaio Bruno (meu patrono) tanto discorreu. Por essa razão dispenso-me (felizmente!) de perorações mais extensas e detalhadas sobre o assunto.
Leonardo Ventura, Memórias da I República Democrática.

Tuesday, March 18, 2008

Mozart, Requiem, Lacrimosa

Pietà, MIguel Ângelo, 1498

Fragmento X

No dia em que nasci
nenhuma estrela cadente
rasgou a noite,
nenhum cometa assinalou o dia.
Na cidade não houve
explosão de fogo preso.
Mas os teus olhos, Mãe,
risonhos e límpidos,
acompanharam-me sempre.

Sem ti a vida
não é dádiva, amor,
é morte antecipada,
desesperança sem sossego,
inquietação sem paz.
Sem ti a vida não faz sentido.
Sem ti eu deixo de existir.

Sunday, March 16, 2008

The Rolling Stones - I can't get no satisfaction

Fragmento LXXIII

Nunca paro para pensar. Caminho sempre em frente. Às vezes paro sem pensar e penso. Aproveito a oportunidade como uma carpa o dia. "Carpe Diem!". Paro, penso e partilho as minhas divagações vagabundeantes.
Sobre os pecados mortais do Ratzinger, acho que apresentar a pobreza extrema de uns e a riqueza escandalosa de outros como um novo pecado mortal revela no mínimo incompetência teológica. No que diz respeito à pedofilia considero-a uma extensão moderna e ocidental da antiga e universal lei do incesto. Sobre o tráfico de drogas prefiro não me manifestar. Não sei como delimitar o conceito. O açúcar é um droga? O chocolate, o tabaco, o vinho e as aspirinas também? Quanto às práticas abortivas não são recentes e, sinceramente, não sei se será maior atentado à natureza o aborto voluntário ou o celibato imposto como regra de vida. Quanto aos outros - as experiências de manipulação genética e a poluição do ambiente são de facto práticas recentes. Não me parece é que dizer que a poluição do ambiente é um pecado mortal ajude a combatê-la. Mortal será ela para o Homem se não for detida atempadamente. Quanto às experiências de manipulação genética, penso que o homem enquanto cientista ou aprendiz de feiticeiro deveria ser cuidadoso e prudente pois está a lidar com forças cujo alcance social e político são dificilmente mensuráveis ou previsíveis. Dizer que manipular é um pecado demonstra apenas uma vez mais o preconceito que a Igreja Católica sempre manifestou em relação à ciência moderna.

Catarina Tao Tao, Deambulações Virtuais

Wednesday, March 12, 2008

CASABLANCA - AS TIME GOES BY

Bocage (1765 - 1805)

Soneto, Bocage

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores;
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade;
Que elas buscam piedade, e não louvores;

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade
A curta duração dos seus favores;

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela Voz da Dependência.

Fragmento VII

As torres sineiras de Betsek al Tibir
tocaram a rebate esta manhã.
- Estudastes toda a sabatina
Flor de Lótus, Flor de Ervilha?
As crianças pasmaram!
Que alma viva ou defunta lhes falava assim!?
- De é uma partícula de ligação,
que, idém aspas, idém, ámen.
Tu é um pronome pessoal
e eu sou eu,
rodopiando nos ares, nos ventos,
nas águas, nas florestas,
nas cabeças e nos corações
dos meninos e meninas
que, de madrugada, ao romper da alva,
saem de casa para a escola,
regressando ao fim do dia,
consumidos e cansados.
- bá, bá... tá, tá, certo!
- Errado!

A professora é chata,
o paizinho dá-me porrada,
conto até três e vou-em embora.
Perto do rio há uma árvore,
uma sombra preguiçosa,
uma casa encantada
e uma fada à soleira, à minha espera.

Monday, March 10, 2008

Afonso Costa, 1871-1937

Fragmento LXXXIV

O primeiro-ministro Afonso Costa era um homem democrático, socialista de boa cepa e um líder incompreendido pelo seu povo. Tivesse ele levado a sua avante e Portugal teria remoçado, rejuvenescido à força de injecções legislativas e pílulas de adrenalina. O seu nome simbólico, digo maçónico, era Platão e enfrentava os fantasmas da caverna com coragem, determinação e inegável benevolência.
Legislador imparável, cientista social de primeira água (pois não media ele o mérito e a capacidade intelectual dos jesuítas com instrumentos de medição infalíveis e cientificamente comprovados?),enfim, um político latino janota e fogoso. Teria certamente tido futuro como político se não fosse surdo e cego a tudo aquilo que não fossem os seus objectivos estratégicos. Desiludido com a política portuguesa partiu para Paris onde foi presidente das delegações portuguesa à Conferência de Paz (1919) e presidiu à Sociedade das Nações (1926). Bendita Europa que acolhes os nossos falhados estadistas!
Leonardo Ventura, Memórias da I República Democrática

Thursday, March 06, 2008

Nietzsche, "A canção da Embriaguez", trad. Paulo Quintela

Ó Homem! Atenção!
Que diz a funda Meia-Noite?
"Estava a dormir, a dormir -,
De um sonho fundo acordei: -
O mundo é fundo,
E mais fundo do que o dia pensava.
Funda é a sua dor -,
A alegria - mais funda ainda que o pesar:
A dor diz: Passa e morre!
Toda a alegria, porém, quer eternidade -,
quer funda, funda eternidade!"

Fragmento LXXVII

Quando dei pelo acontecimento estava de cama com uma pneumonia. Era o 25 de Abril. Fiquei banzada. Não fazia a mínima ideia de que tinha vivido durante quase três anos em ditadura (antes não vivia em Portugal). Os nossos camaradas expulsaram os fascistas do poder, nós, na escola saneámos os professores. Fazíamos piquetes, assembleias, manifestações, a rua virara festa, a escola era alegria. Quem ensinava o quê, a quem, porquê? Tudo era questão, diálogo, discussão, a vida não era a simplicidade do pequeno-almoço, do sono a seguir ao jantar, era problema, vigilância, debate. A partir de então passei a estar atenta, despertava de manhã e continuava a espertar durante o dia. Foi por essa altura, mais ou menos que comecei a filosofar por conta própria.
O meu primeiro professor de filosofia era uma pessoa espantosa. Não lembrava ao diabo! Aparecia nas aulas todo vestido de vermelho, emoldurado pelo fumo dos cigarros, pairando acima de nós como um ser do outro mundo. Com ele vinham outros com nomes esquisitos, difíceis de pronunciar - Kant, Heidegger, Husserl, sei lá quem mais.
Kant já eu conhecia porque era uma rapariga curiosa e gostava de conhecer a vidinha de toda a gente e entre os dramas de Shakespeare e as aventuras do Sandokan na Malásia, lá tinha arranjado algum tempo para as biografias. Numa delas tinha topado com o senhor Kant e descobri que tinha um tique esquisito. Saía de casa, todos os dias às oito horas em ponto, reguladas pelo relógio da cidade, para dar um passeio pelo jardim municipal, se não era pelo jardim era pelos arredores.
(Foi há tanto tempo que já não me lembro muito bem!)
Sei é que a vizinha pasmava-se de o ver sair todos os dias à mesmíssima hora, tão certinho como o relógio da cidade. A senhora nem precisava ouvir as badaladas: "O senhor Kant saiu de casa. São oito horas!"
Não, não era a regularidade - as minhas aulas também eram assim certinhas, controladas pelo relógio - era porque ele ia dar um passeio. Não conseguia perceber como é que se podia ir espairecer, apanhar ar, desenfadar-se enfim e agir como um máquina. Tão regular e controlado como o relógio da cidade, tão inumano como um autómato.
Mas não era só de Kant que o professor falava nas aulas. Era do Ser e da Casa do Ser.
Durante vários dias andei absorta e pasmada, procurando pela criatura. Não era o João, não era a Maria, não era o Manuel, não era um gato branco, não era Deus, o que seria então? Desisti como a raposa da fábula e conclui com os meus botões: "È apenas uma palavra. Nada mais do que uma palavra."
Palavra!? Substantivo ou verbo?
Raciocinei rapidamente: "Substantivo não pode ser, não existe, não é criatura, não é ente, não é nada! Só pode ser verbo".
(E Verbo era Ele).
Mas não tinha imagens para o Verbo desencarnado de Heidegger e desinteressei-me.
Eu gostava das imagens e de inventar imagens. No livro de História havia muito mais imagens e mesmo que não estivessem lá eu via-as em todo o lado.
Napoleão no Egipto!
(Não, não é o actual chefe de Estado francês!)
Imponente, no sopé de um monte de areia, contemplando face a face a Esfinge, emproado, com a mão direita sob o uniforme e a esquerda, atrás das costas, a voz tonitruante, proclamando qualquer coisa como: "Soldados diante destas pirâmides, milhares de anos de História vos contemplam!".
Empolgante! Até eu sentia o meu coração palpitar,aguilhoado pelo desejo, ligado à corrente, electrizado, capturado pela imagem.
(Em frente e para a frente, avante camarada avante, força Portugal, junta a tua à nossa voz...).
Tempos depois descobri o cinema e o teatro de Brecht: "Querem ir para longe da mãe, seus diabos,e meterem-se na guerra, como cordeiros na boca do lobo..."
(Corajosa mulher! Não, eu também não deixarei que matem os meus filhos. Mas eles morreram, morrem e morrerão todos os dias!)
E o cinema? O apelo, a magia, a sedução do cinema:"Play it Sam! Play it again!".
Se pudesse voltaria atrás? Executaria os mesmo gestos, os mesmos actos? Não sei...
Narciza Felizarda, Crónicas de Antanho

Monday, March 03, 2008

Marcel Marceau

Fragmento LXXV

Ela passou por mim,
sorridente e trémula.
Pés nus, ancas corredias,
o rosto branco:
uma rodela de ananás,
duas gotas de orvalho,
uma cereja,
dois botões de rosa.
Um mimo.