Wednesday, October 31, 2007

Valete - Menina dos olhos tristes

Fragmento XIV

Nunca mais cantou e dançou
a cigana de cabelo trigueiro,
pele morena, boca vermelha,
olhos tamanhos, um ai de dó!

Quem te levou moça?
Pensativa ou louca
teces no vento
longo véu de noiva.

E é em vão que esperas.
O rio onde lavas
dolente espelha dolorido
o teu sorriso calmo e abandono.
O soldado não regressa
e a sombra cresce quando a noite tomba
e adormeces e sonhas.

Tuesday, October 30, 2007

Queixa das almas jovens censuradas - camarrotuga

Fragmento XXXIII

Fim de tarde em Novembro,
em revoada, os pássaros
buscam as árvores.
Ardem-me as lágrimas, a raiva,
a poeira no rosto,
a alma sem guarida, a carne que sangra,
e em mim é outra que sofre, passiva,
perdida nos abismos da memória.

Sunday, October 28, 2007

Elis Regina, Fascinação, Transversal do Tempo, 1978

Fragmento XL

Canta agora
como outrora quando
com a lua nos teus olhos
te punhas à varanda,
um cravo vermelho entre os dentes,
vestida de amarelo,
mimosa sorrindo, resplandecente.

Não leias livros tontos,
não contes histórias absurdas,
não cedas às minhas sevícias,
antes vem, brandamente,
e esta noite chama.
À luz da velha vela,
brilha alto o sonho antigo.

Wednesday, October 24, 2007

El amor brujo, Manuel de Falla

Shakti - Shiva, coreografia de Maurice Béjart, 1969.

Fragmento I

A minha alma é idólatra e ama os deuses.
Vestidos de flores, coroados de pássaros,
sátiros e ninfas, anjos e demónios,
esparramados pelo verde,
liquefazendo-se em azul,
ardendo em chamas de oiro e sangue negro
como o coração da Natureza.

Monday, October 22, 2007

Leonard Cohen - Anthem - Nature

Fragmento XV

Frágil e esquiva
como uma donzela
de outras eras
esvoaça na penumbra da sala
a tua lembrança,
Mãe!
As horas cobriram de prata e cinzas
o teu cabelo de oiro
mas não destruíram o encanto
virginal e casto da tua infância.
E em segredo no dedo
a aliança,
tu e eu permanecemos indiferentes
ao Tempo, séquito e carruagem
que à nossa porta batem,
pedem água e incautos seguem viagem.

http://ericblumrich.com/antiwar2.html

Sunday, October 21, 2007


Fragmento IV

Na encosta da montanha, alvejava,
destruída e abandonada,
uma casa de pedra e cal.
Dela se abeirava toda a sorte estranha de gentes.
Invisível eu pairava
no parapeito das janelas abertas,
no interior das portas escancaradas.
Via-as passar, parar e partir
seguindo o mesmo caminho.

Em silêncio, ela sofria,
- quem era ela eu não sei -
colhia gravetos e madeira na floresta,
calafetando fendas e feridas antigas.
Em vão.
Um vento mais agreste
e outra vez a nudez surgia.

Sentada na mesa do café,
aberta e ausente,
com um copo de água fria,
a forasteira sorvia a música
e o olhar distraído dos transeuntes.

Thursday, October 18, 2007

Maria Bethânia e Hanna Schygulla (01) - Emoções

Fragmento XXXI

Meu amor,
Minha alegria.
Minha taça de champagne,
borbulhante de ternura.
Minha nuvem de oiro azul,
estriada em cor de sangue.
Meu coração palpitante.
Minha sede de infinito,
perfumada de jasmim.
Ramo sou de marmeleiro.
Lírio aceso. Ventre em flor.
Corpo errante que uma alma habita
- eu própria tornada estranha -
rogo-te pragas, gemo e balbucio.
Em quatro tempos,
dança e sabre,
mão e chama.

Mensagem cifrada, algarismos trocados
em nota de rodapé:
não te pertenço ou amo.
Como sabes.

Wednesday, October 17, 2007

Nijinsky

Fragmento IX

Corre Eros pelos campos.
Vigiam as mulheres,
Não vá o deus fazer tropelias.
Espelhada no lago,
a sua sombra é como um sorriso terno,
impalpável e fugidia.

Anoitece.
Entre juncos e violetas,
Estremece ainda a luz do dia.

Nijinsky 1990 - Jorge Donn

Sunday, October 14, 2007

LE METEQUE - GEORGES MOUSTAKI

O judeu errante

Meu coração arde
como um incêndio na noite escura.
Vim de Espanha
Para lá de Málaga
Muito além de Sevilha.
É tarde. Não vens.
Estou sòzinho.
Na mesa o jantar esfria.

Marc Chagall, Eu e a Aldeia, 1911


A noiva judia

Oiço a morte
que bate à minha porta
Vem vestida de noiva
com um ramo de rosas brancas.

Thursday, October 11, 2007

Lord Byron, Londres, 1788, Missilonghi, 1824


O crepúsculo da tarde, Byron

Hora doce do trêmulo crepúsculo!
quantas vezes errante, junto à praia,
na solidão dos bosques de Ravena,
que se alastram por onde antigamente
flutuavam as ondas do Adriático,
Bosques frondosos, para mim sagrados
pelos graciosos contos do Boccácio,
pelos versos de Dryden; - quantas vezes
aí cismei aos arrebóis da tarde!

Tudo o que há de mais grato, a ti devemos,
ó Héspero: - ao romeiro fatigado
dás a hospedagem: - a cansado obreiro, a refeição da tarde; - ao passarinho,
a asa da mãe; - ao boi, o aprisco:
toda a paz que se goza em torno aos lares,
o quente, o meigo aninho dos penates,
descem contigo à hora do repouso,
tu coas n'alma o doce da saudade;
moves o coração, que a vez primeira
sai da terra natal, deixa os amigos,
e anda à mercê das ondas do oceano:
enterneces, enfim, o peregrino
ao som da torre, cuja voz sentida
como que chora o dia moribundo.

O príncipe do Oriente

O meu príncipe do Oriente
cantava sonetos à lua
e pedia-a em casamento.
Reinava sobre um bando de mendigos,
bandoleiros, homens de estrada,
que à socapa dele se riam.
Era jovem, soberbo e belo.
Tinha na cabeça uma pluma de avestruz,
entre os dedos uma pedra de cristal.
Cheirava, mesmo a léguas de distância,
a Lord Byron, romântico e apaixonado.
Eu amava-o, amava-o, amava-o...
Nos bailes entretinha-se com as moças do lugar,
convidando-as para as danças.
Era jovem, soberbo e belo.
Eu amava-o, amava-o, amava-o...
Sorriam-lhe as raparigas,
queriam-no as velhas.
As sobrancelhas tão espessas
pareciam florestas imensas,
o olhar de tão doce magoava.
Era um homem muito triste,
o meu príncipe do Oriente,
cantando sonetos à lua
e pedindo-a em casamento.

Comptine d'un autre été L'après midi

Monday, October 08, 2007

Dissecação Cerebral

Clépsidra,
almoço-jantar,
pequeno-almoço.

Abro o ventre
com um canivete:
Três ovos,
uma chiclete,
paté de camarão.
Torno a fechar.

Agulha, sangue,linha e coliseu.
Homenagem a Rembrandt.

Desmembrado o corpo.

A lição de anatomia do Dr. Tulp, Rembrandt, 1632


Sunday, October 07, 2007

Sei lá a razão

Não sei o que hei-de fazer. Experimentei todos os processos conhecidos e por minha conta até inventei alguns. Que falta de chá! Não preciso que me lembrem que tudo isto é um disparate pegado. Que a vida é uma chatice. Obstino-me e sei que é inútil. A parvoíce daquele homem no autocarro. Será que me tomam por lorpa ou quê? Poderia adjectivar indefinidamente: absurdo, estranho, abstruso, sei lá que mais! Hoje foi um dia a mais. Todos os meus dias estão sempre a mais. Não servem para nada. Não consigo ser feliz.

Thursday, October 04, 2007

O homem de Vitrúvio, Leonardo da Vinci, 1492


No túmulo de Leonardo

Esta lua mata-me. Lentamente, como convém a todos os supliciados. Durante horas fico imóvel, paralisado, com a cabeça encostada aos joelhos, em posição fetal, debaixo daquela luz incandescente e gelada. Uma pedra vermelha, incrustada no meu cérebro toca a rebate, brilha. É alguém que se aproxima. Impossível dormir. Impossível concentrar-me. Vertigens eléctricas percorrem-me o corpo, impedindo-me a saída. Não consigo mexer-me. É necessário mudar a página e fico preso à folha de papel, incapaz de a destruir.

Wednesday, October 03, 2007

Para que tu saibas

Ainda ontem à tarde perguntei-te: "Queres vir?". Repito-te: "Queres vir?"
Querida, não te faças desentendida. Ambos sabemos muito bem como é que tudo vai acabar. Nas contas do fim do mês. Na medida bem calculada de mentiras e verdades: "Não me peças dinheiro emprestado. Bem sabes que ando liso."
Estou esgotado. Não tenho energia para tocar o bandolim.
- Viste o meu creme de barbear? Achei piada à maneira como peneiraste a farinha. Não é muito vulgar. A cicatriz que tens nas costas como é que a arranjaste?
Amanhã. Por que será sempre amanhã que tudo vai acontecer? As cartas que o carteiro não trouxe hoje. As chamadas que o gravador telefónico não registou. Amanhã sim. Amanhã talvez.
- Viste a Isabela? Onde? No hospital!? Deitou-se a dormir e não acordou. Interessante. Detesto a irresponsabilidade com que as pessoas se suicidam. É um crime a maneira como incomodam os amigos. Ter que ir ao hospital. Logo hoje. Que maçada!
Às vezes paro um bocado e não me reconheço. Por isso tenho medo de parar. Medo de descobrir que estou deitado a dormir e talvez morto.

Monday, October 01, 2007

O último profeta

A tua cabeça pesada de desejo,
os teus olhos de fogo, obstinados,
fixam um sonho ausente.
Teus cabelos revoltos, ó visionário!
sibilam a linguagem do vento.
Eternamente inquieto, afastas-te.
E na areia do caminho,
pouco a pouco,
a sombra dos teus passos
se desvanece.

Friedrich Wilhelm Nietzsche, 1844-1900


Assim falava Zaratustra

Ó homem, toma cuidado!
Que diz a meia-noite profunda?
"Eu dormi, dormi...
e dum sonho profundo despertei:
O mundo é profundo,
mais profundo do que o pensava o dia.
Profundo é o seu mal...
A alegria... mais profunda do que o sofrimento do coração!"
A dor diz: "Passa!"
Mas toda a alegria quer a eternidade...
... quer a profunda, profunda eternidade!