Monday, December 31, 2007

W.A.Mozart - Requiem(I.Introit II.Kyrie)

Fragmento X

Sombra espessa,
sombra móvel.
Sombra nos meus cabelos.

Friday, December 28, 2007

Álvaro de Campos, Dois Excertos de Odes (fins de duas odes, naturalmente), 30-06-1914

Vem, Noite antiquíssima e idêntica.
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

(…)

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados.
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.

A mulher do xaile negro

Ave de mau agoiro, harpia,
fome inextinguível,
garras afiadas,língua aguçada,
onde pressinta uma fraqueza,
ela ataca, vítima após vítima,
indiferente ao amor, ao sexo, à vida.
Algures ela espreita,
morte insaciável,
inteligência pura.

Thursday, December 27, 2007

Billie Holliday, Strange Fruit

Fragmento XXVI

Roída a corda,
reina o silêncio.
A noite impera,
desolada e pálida,
sobre os escombros da guerra.

Wednesday, December 26, 2007

"Zorba, The Greek", dir. Cacoyannis (1963)

Fragmento III

A taça, cheia e ensombrada, estremece.
O vinho, espalhado pela mesa,
gota a gota, tomba,
no chão alastra a mancha.
Cala, finge que acontece
o que acontecer não pode
senão se os deuses o consentem
e vibrante desfere o golpe.
O tempo dá, o tempo tira,
a mentira ensina a verdade do que há.

Monday, December 24, 2007

Ex-voto a Endovélico

Fragmento XXXV

Gautama! voltou meu coração.
Vejo-o passar, sentada à janela,
às vezes nuvem, outras vezes pássaro ou barco.

Se soubesse onde moravas teria enviado
minha serva com glicínias e magnólias,
pedras do caminho e nós de uma corda
e se aceitasses,uma cornucópia de figos,
amêndoas,nozes, mel e uvas passas.

Friday, December 21, 2007

Eugénio de Andrade

Canção, Eugénio de Andrade

Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Dei o cravo e dei o lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não?

Fragmento XXVIII

Namorada ia ela
pela calada da noite
saltando valados
esmagando a erva
os cães ladrando.

Thursday, December 20, 2007

Segreis de D. Dinis

Cantiga de amigo

Ai flores, ai flores do verde pinho
se sabedes novas do meu amigo,
ai deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado,
ai deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquele que mentiu do que pôs comigo,
ai deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquele que mentiu do que me há jurado
ai deus, e u é?

(...)

D. Dinis

Fragmento XXIV

Casa de cristal,
Pátria minha.
Casa mais antiga
das mais antigas conhecidas!

Sou moça e fidalga.
O meu cavalo é árabe.
A minha cintura fina.
Lânguido e cruel
é o ladrão que me encarcera
nesta torre fria.

Wednesday, December 19, 2007

Excerto de "Le Feu Follet"(1963), Louis Malle. Música de Eric Satie.

Fragmento XVII

Dançando o tempo perdido das origens
uma ligeira poalha de ouro
coroou o templo,
enfaixado de linho branco.
Dos que nunca partiram triste é o canto.
Submersos nas almas paradas,sonham,
relembrando o destino, sempre porvir.

Wednesday, December 12, 2007

As sete mulheres do Minho

Fragmento VI

Estava sentada
num campo de margaridas
e um rapaz comigo.
A minha mãe chamou-me.
Eu respondi-lhe:
"Não vou. Eu fico."

Saturday, December 08, 2007

Elvis Presley - Love Me Tender (Live 1968)

Fragmento XX

Tudo começou com o meu primeiro amor. Na igreja da minha primeira comunhão. Nesse dia, terna e ardente, desejei esse deus de paixão e morte. A vida é monstruosa, pensava eu, um rio apodrecido onde flutuam, à deriva, corpos mortos, e orava baixinho: "J'ai besoin du miel de ta bouche, du chaleur de ta peau, du pain de tes mains, du ciel de tes yeux ouverts." Esperava um sinal. Não veio.
Para me curar dessa pancada, cuja mancha perseguiu-me sempre, rigorosa e ao sabor do acaso, construí uma muralha tão alta, longa e poderosa como a muralha da China e no espaço desse zero afectivo recompus-me, lentamente.
Durante esse tempo, possuída de terror e júbilo, senti-me uma vénus pré-histórica, grossa e grávida e, nas minhas noites de insónia, inventei outros deuses, criei heróis, seduzi demónios. Um dia, não sei como descobri, talvez por acidente, numa estrada, algures, no Sul, que o meu mundo não fazia sentido senão desses estreitos limites onde eu vivia escondida. Não me senti feliz ou triste. Se o mundo era um asilo de loucos, uma peça de teatro absurda, representada por actores esquizofrénicos ou paranóicos, uma projecção colectiva de deuses mortos que deambulavam pelo espaço de representação, invadido pelo escuro, tanto fazia. Aliás, gostava mais da minha loucura que da deles, pelo menos, era minha.
Aos outros, não os conhecia, sentados, assistindo, obscuros e ignotos, ao espectáculo. Nas minhas tardes de tédio, protegida pelas ameias do meu castelo de palavras, observava os seus gestos e classificava-os como objectos de marketing ou obras de arte, belas ou imperfeitas, que por um acaso magnífico possuíssem vida. Gostava de vê-los rodopiar no ar como poeira que um vento divino sacudisse e derrubasse no solo, depositasse nos telhados das casas, nas estátuas das praças dos jardins públicos.
Do meu mundo caótico excluí o sofrimento. Foi quando te conheci. E de noite chorei e esta manhã quando aventurei-me e saí, tinha os olhos vendados e caí no passeio. Caminhei pelas ruas da cidade como sonâmbula e trazia nas mãos a flor que me tinhas oferecido.

Thursday, December 06, 2007

Os vampiros, Zeca Afonso

Carta a um camarada

Prezado colega,

Ao longo destes últimos anos, quiçá influenciado pelas contemporâneas metamorfoses epistemológicas que insistem em vender como novo aquilo que é antigo, valha-me Santo Péricles e a Liga de Delos, venho, progressivamente,aproximando-me de posicionamentos diferentes dos que me eram habituais, vencendo as dificuldades inerentes à minha natural modéstia e propensão para a visão paralítica das realidades sociais e humanas, atitude comum naqueles que, como eu, sem princípios, metodológicos, naturalmente, se iniciaram no estudo da "Comédie Humaine".
Há já algumas lustrosas décadas que reúno material para escrever um chorudo estudo sobre a função dos conceitos abrangentes dentro da sociedade ocidental contemporânea. Apercebeu-se com certeza que me refiro concretamente ao Complexo Imperial Ocidental (CIO). Infelizmente, outros afazeres científicos têm-me desviado e impedido de concretizar este antigo anseio. Não me coíbo de expressamente citar a minha tese de doutoramento, magnamente aprovada pela Universidade Africana de Moto Ledo, sobre as causas, consequências, objectivos e meios, não do terramoto que destruiu Lisboa em 1755, por todos sobejamente conhecido, mas sim do maremoto que lhe foi concomitante, evitando, embora, criar situações de paralelismo e convergência. Escrevi sobre o assunto alguns milhares de páginas, tanto quanto possível e sempre que a complexidade do tema assim o exigiu numa linguagem clara e transparente, ressalvando, embora, num ou noutro caso, a natural fragilidade inerente a algumas das palavras. Purga. Cruz. Credo. Canhoto.
Regressando, sem nunca lá ter estado, ao motivo que me levou a escrever-lhe, gostaria que me desse a sua opinião sobre o plano de salvação nacional que gizei para salvar a falida economia portuguesa do caos turbilhonante que a invade e que, seguidamente, passo a expor:
A saber:
Quantos portugueses deveríamos exportar para a lua, no prazo máximo de dez anos e a que ritmo para que Portugal se transforme no maior campo de golf até hoje arquitectado neste planeta, onde os nossos amigos europeus e americanos, classe média superior, a nata da civilização, com quem temos com esforço criado laços, possam vir com prazer despender os seus ecus e dólares? A felicidade dos portugueses, meta para qual trabalho, assim o exige. Somos muitos. Somos demasiados. Estragamos a paisagem.

Seu amigo, sem desfalecimento,
Leonardo Ventura

Tuesday, December 04, 2007

Eros e Psique, Antonio Canova, 1757-1822

Personagem à procura de um autor

Já não consigo dizer tanto faz ou sei lá. Tento escolher. Não sou capaz. Vejo apenas um enorme céu azul muito pálido de papel à minha frente. Havia alguém que morria e cantava alguma coisa. Tento recordar ... "There was a song and I was there...Somewhere I lost myself..." É inútil... Não consigo. Quem era eu? Quem cantava? Nenhum deus iluminará a minha alma? Não. Incendiará a minha escuridão? Não. O meu corpo é cego. Sou pobre. Não tenho alma.

Sunday, December 02, 2007

Fight Tango, Belle Chase Hotel

Framento LX

Hoje acordei cheia de sofreguidão, baba e ranho. Senti-me mal. Sento-me na cama e dou comigo a pensar que alguma coisa não vai bem. Tenho a sensação de que sou visível. Suspeito mesmo que ando a ser seguida. Ergo as persianas. Faz-se luz. Vou ao armário. Não vejo nada. Debaixo da cama ninguém. É estranho. Qualquer dia sou apanhada e então há-de ser bonito! Já não sei onde me esconder. Ando a ser apalpada e não dou por nada. Não! As coisas, sei lá eu o quê, talvez seja eu, eu não estou bem comigo!

Wednesday, November 28, 2007

The Doors, Touch Me

Mephist.h'eros

Jogo evidentemente,
sou jogador,
um amador perverso,
estremeço e abandono,
prendo e tiranizo,
os que ao meu leito se confiam.

Ladrão ou saltimbanco,
espreito.
Aguardo o momento oportuno.

Thursday, November 22, 2007

Fragmento IV

Aquele que É, é em demasia.

Funeral March for a Marionette

Malevich, Suprematismo

Monday, November 19, 2007

Noli me tangere, Correggio, 1493-1534

Amália, Estranha forma de vida (Expo 98)

Noli me tangere

Logo à primeira vez que a vi, a imagem capturou-me e, várias vezes, tergiversando, regressava a ela. Tinha a sensação esquisita de que havia ali um enigma à espera de ser decifrado. Pouco a pouco, fui entrando dentro do quadro tentando perceber qual era o oculto mistério que me fascinava. Estranho, pensava eu, verdadeiramente estranho.
Das primeiras vezes só olhava para ela ali interrompida com o abraço suspenso nos braços como uma criança sem pai. Ele, impassível, dedo espetado para cima, disfarçado de jardineiro, a pá ao lado como se há pouco tivesse acabado de remexer na terra. Abrindo sulcos?, regos?, semeando?, interrogava-me eu.
É óbvio que eu conhecia a melancólica e estafada estória. Ela amava-o. Ele queria partir, comprar cigarros, prometendo que voltava, mas nunca regressou. Sentia pena, uma secreta dorzinha roendo-me do lado esquerdo como se fosse eu que tivesse perdido alguém que amasse.
A seguir veio a raiva: "Pérfido, mentiroso, falso, hipócrita!" gritava eu para dentro, emudecida por um secreto pudor que me impedia de exteriorizar o que sentia. Um consumado actor, em suma!, admirava-me eu, em surdina com os meus botões, no sótão, fumando um cigarro às escondidas.
Depois o silêncio instalava-se e a imagem continuava à minha frente como se permanecesse à espera de algo que eu ignorava.
Devagarinho, comecei a olhar para o homem à minha frente, tentando decifrar o que dizia. Pus-me no lugar dele, perdendo-o de vista para ver apenas o caminho que ele apontava e, sem me aperceber como, dei por mim a murmurar: "Cala-te Leninha! Não sabes para onde vou. Não sei se voltarei. Por que teimas em seguir-me se não sabes para onde vou?"
A imagem, repentinamente, iluminava-se, ganhava movimento e sentido, fluindo dos meus olhos e a eles regressando num hipnótico reconhecimento. Aficcionadamente, regressei muitas vezes, inventando diálogos infindos, conversas intermináveis, murmúrios indefiníveis, mudando várias vezes de posição, de perspectiva, adequando sempre o discurso à figura que através da realidade da imagem, eu, apaixonadamente, visava, para sofrer mais, gozar melhor. Brincar ao esconde-esconde tornara-se um jogo divertido que me enchia de um júbilo perverso pincelado algumas vezes por roxa melancolia e negra suspeita: "Ao vencer não terei eu perdido? Terei eu ao menos vencido?"
Aos poucos, lentamente, o cansaço entrava em cena, desfazendo o secreto encantamento que me prendia ao quadro. "Noli me tangere". Sim, eram essas as palavras certas. Acertadas, finalmente, todas as contas entrelaçadas do meu colar de pérolas!

Lembras-te ainda?
Era assim não era?

Com este jogo de escondidas
o tempo ia passando
e, se acaso, me descobrias,
célere eu corria
pelo labiríntico jardim.
E, atrás do muro, disfarçado,
parado, observava-te, espreitando,
aturdida, procurando,
o buxo, o arbusto ou a sebe,
atrás da qual eu me escondia.

Friday, November 16, 2007

Chopin, Nocturno

Florbela Espanca, 1894-1930


Florbela Espanca, Charneca em Flor

O meu Destino disse-me a chorar:
"Pela estrada da Vida vai andando,
E, aos que vires passar, interrogando
Acerca do Amor, que hás-de encontrar."

Fui pela estrada a rir e a cantar,
As contas de meu sonho desfiando...
E noite e dia, à chuva e ao luar,
Fui sempre caminhando e perguntando...

Mesmo a um velho eu perguntei:
"Velhinho,Viste o Amor acaso em teu caminho?
"E o velho estremeceu... olhou... e riu...

Agora pela estrada, já cansados,
Voltam todos p'ra trás desanimados...
E eu paro a murmurar: "Ninguém o viu!..."

Idílio romântico

Já se passou tanto tempo. Lembras-te? Eu era uma miúda e usava tranças. Dormia todas as noites contigo. Sentia-me feliz. Depois perdi-te, engolida pela voragem do tempo. Muitas vezes acordei de manhã, chorando. Sonhava que vinhas ter comigo e eu não te reconhecia. Eras um soldado barbudo e feio. Um velho resistente de guerras muito antigas como Che Guevara. Esqueci que o tempo tinha passado e não podias mais ser o principezinho louro guardado nas minhas recordações.Esta noite acordei banhada em suores frios, chamando por ti. Apetecia-me estar contigo amadurecendo, como outrora, no calor do teu peito. Soldadinho de chumbo, eu sou a tua bailarina. De noite adormeço buscando a tua presença no labirinto dos meus sonhos. De dia caminho cega e a vida rouba-me tudo. Nenhuma águia traz-me nas asas um pouco de luz. Hienas e chacais são os meus companheiros de estrada. Chamam-me doida. Habituei-me ao sofrimento mas estou quase morta. Fazes-me falta. Diz-me que não foi fingimento o teu beijo quando nos reencontramos em Veneza, por um acaso que não sei explicar, a nossa noite de núpcias, por detrás das cortinas vermelhas, em segredo, no palácio do Doge. Continuo no teu encalço e sei que em Espanha esperas por mim com um anel no dedo e veneno dentro desse anel. Para sempre tua.
rascunho

Wednesday, November 14, 2007

Ravel, Pavane Pour Une Infante Defunte, Grave Of The Fireflies AMV

Antero de Quental, 1864


Antero de Quental, noivado bárbaro

Oh! o noivado bárbaro! o noivado
Sublime! aonde os céus, os céus ingentes,
Serão leito de amor, tendo pendentes
Os astros por docel e cortinado!

As bodas do Desejo, embriagado
De ventura, afinal! visões ferventes
De quem nos braços vae de ideais ardentes
Por espaços sem termo arrebatado!

Lá, por onde se perde a fantasia
No sonho da beleza: lá, aonde
A noite tem mais luz que o nosso dia;

Lá, no seio da eterna claridade,
Aonde Deus à humana voz responde;
É que te havemos abraçar, Verdade!

Carta de um soldado à sua amada

São cinco e meia da tarde. O vento corre em torvelinhos. As árvores batidas pela tempestade jazem pelos campos. Volta. Ouço ainda o murmúrio do rio. Lá fora do outro lado de dentro, talvez encontres algum abrigo.
Tenho uma mão mutilada. Lembras-te? Foste tu numa noite de raiva e desejo. Acusaste-me do roubo do teu colar de contas prateadas, a única jóia que possuías. Apanhaste a tesoura do armário onde a tinhas escondido para que eu não a encontrasse e bateste e esfacelaste até que a minha mão se transformou num farrapo. Não te comoveste. Rias-te ainda.
Às escondidas mamavas da minha garrafa de whisky e choravas baixinho para que ninguém te ouvisse. Ninguém te ouvia. Excepto eu.
Amaldiçoei o teu nome e jurei destruir-te. Não encontro a paz.
Ontem parecias uma criança. Sentavas-te ao meu colo e querias brincar. Nunca precisei de te pedir nada. Davas-me tudo. Porque mudaste tanto? Não consigo compreender o que se passou naquela noite. Atraíste-te com os teus meneios de princesa-escrava judia. Abandonei-me a ti e foi então que traíste. Nunca soube muito de ti. É verdade o colar de contas prateadas?
Tento reconstruir a minha vida mas dói-me o absurdo. Não sei se és culpada ou se eu sou inocente. Procurei por ti em todos os bares e vi-te assomando a todas as janelas, cruzando-me contigo em todas as esquinas. Fui expulso do meu perfeito paraíso e abismado permaneço em ti. Gostava de te voltar a encontrar.

Rachmaninoff, Russian Bell

Monday, November 12, 2007

Fernando Pessoa, "em flagrante delito"


Álvaro de Campos, Vilegiatura

...
Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,
Como e onde a tesoira e o dedal de uma outra.
Cismavas, olhando-me como se eu fosse o espaço.
Recordo para ter em que pensar, sem pensar.
De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo.
Olhaste conscientemente para mim, e disseste:
"Tenho pena que todos os dias não sejam assim" -
Assim, como aquele dia que não fora nada...

Ah, não sabias,
Felizmente não sabias.
Que a pena é que, feliz ou infeliz,
A alma goza ou sofre o íntimo tédio de tudo,
Consciente ou inconscientemente,
Pensando ou por pensar -
Que a pena é essa...

Lembro fotograficamente as tuas mãos paradas.
Molemente estendidas.
Lembro-me, neste momento, mais delas do que de ti.
Que será feito de ti?
Sei que no formidável algures da vida,
Casaste. Creio que és mãe. Deves ser feliz.
Porque o não haverias de ser?

Só por maldade...
Sim, seria injusto...
Injusto?

(Era um dia de sol pelos campos e eu dormitava, sorrindo).
... .... .... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
A vida...
Branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar.

Carta de Ofélia Baby ao seu amado

Querido bozeguinho,

Nunca te percebi. O inglês não é o meu forte. Se falasses russo eu batia com as portas e punha-me à janela.
Sou surda, muda, mas não sou cega. Deus te pague. Eu não tenho cheta. Tout quand même je t'adore.
Um piano não é uma casa. Uma casa não é um bandolim. Quando escovo os dentes penso: onde foi que pus o pente?
Tenho tudo fechado. Sete chaves e um cadeado. E se te escrevo sou tua amiga. Um dia não são dias e amanhã vou à florista.
Recado: não percas tempo comigo. É impossível venceres ou mesmo convenceres. Recebe assim (não sei se devo alguma coisa) o tributo da minha ternura que é imortal e eterna, mas que de vez em quando, em dias de aniversário (a Carlita faz amanhã anos), cede à trivialidade de se manifestar nestas moedas de vil metal que se chamam palavras.
Vê se te lembras! De noite todos os gatos são pardos. Miosótis são as flores que prefiro. Ou às vezes tulipas amarelas.
Nunca esqueças! Sou filha do dia, irmã do vento. Malfadado é o dia! tempestuosos correm os ventos.
Por favor não me leves a sério. Se eu um dia me levar a sério, acabo morta: de susto, medo ou pasmaceira.
Bozeguinho, é verdade que o sol nasce, morre, levanta-se e põe-se? Todos os dias? E eu bozeguinho e eu quantos dias?
Perdi os meus óculos de sol pela segunda vez. A demasiada claridade mete medo. Por isso escrevo. Tenho a mania da perseguição mas acontece que não percebo. O sinal será de mau agouro?

Thursday, November 08, 2007

NAVIO NEGREIRO SURREAL

Delírio Báquico

Era uma casa estranha
habitada apenas por fêmeas
feias e esfarrapadas.
À varanda, uma mulher gorda e celulítica,
velha professora de bioquímicas,
desdentada, o vestido aberto e ao abandono,
gritava obscenidades às gentes que passavam.
Ninguém percebia o que dizia
mas a imagem era traumática
para aqueles que a viam semi-nua e doente.

Pela cidade circulavam boatos:
eram virgens loucas que esperavam
pelo Outono, a vinda da Criança,
o Salvador.
A construção arruinada e entulhada de lixo
tinha corredores obscuros,janelas fora do sítio,
situadas no subsolo,
abertas para os canais de esgoto
de todas as vilas e cidades,
situadas na linha do arquetípico meridiano
que corre entre a lua e a Cidade Antiga,
no centro e na periferia
do quixotesco e magnífico Império Lusíada.

Viagens do Tambor

Bacante, William-Adolphe Bouguereau, 1855


Tuesday, November 06, 2007

Yukio Mishima, 1968


Fragmento XXI

Crisântemo, belo crisântemo,
triste e escuro,
veloz o dardo,
banhou-te em sangue.

Monday, November 05, 2007

A jangada de Medusa, Géricault, 1816


A prisioneira da lua

Carantonha de ar feroz,
animal trágico,
monstro, víbora, canibal,
escaravelho alado,
recita para mim
o estribilho atroz.

Pan! Pan! Pan!

Aconteceu mil cento
e uma vez,
num reino de outrora,
de aquém e de além mar,
de retalhos todo feito,
uma princesa sem nome
que alucinada dormia,
embebida em seus sonhos.

Foi a bela
pela noite de olhos escuros
devorada em carne viva
e definhando jovem,
muito jovem,
no seu palácio de cristal e âmbar
acreditava morrer longe,
muito longe,
dentro duma jangada africana,
perdida no mar das Caraíbas,
em pleno centro do coração atlântico.

Saturday, November 03, 2007

Blue Velvet - Trailer

Fragmento XLV

À entrada das grutas
o mar protege os seus segredos.
Mesmo com asas quebradas
o corpo sonha a cópula perfeita,
o assassino com mãos de mulher,
a morte violenta,
o paraíso soterrado
nas ruas asfaltadas da cidade,
onde deambulam sonâmbulos
anjos carregados como escravos
de sangue, suor e medo.

Wednesday, October 31, 2007

Valete - Menina dos olhos tristes

Fragmento XIV

Nunca mais cantou e dançou
a cigana de cabelo trigueiro,
pele morena, boca vermelha,
olhos tamanhos, um ai de dó!

Quem te levou moça?
Pensativa ou louca
teces no vento
longo véu de noiva.

E é em vão que esperas.
O rio onde lavas
dolente espelha dolorido
o teu sorriso calmo e abandono.
O soldado não regressa
e a sombra cresce quando a noite tomba
e adormeces e sonhas.

Tuesday, October 30, 2007

Queixa das almas jovens censuradas - camarrotuga

Fragmento XXXIII

Fim de tarde em Novembro,
em revoada, os pássaros
buscam as árvores.
Ardem-me as lágrimas, a raiva,
a poeira no rosto,
a alma sem guarida, a carne que sangra,
e em mim é outra que sofre, passiva,
perdida nos abismos da memória.

Sunday, October 28, 2007

Elis Regina, Fascinação, Transversal do Tempo, 1978

Fragmento XL

Canta agora
como outrora quando
com a lua nos teus olhos
te punhas à varanda,
um cravo vermelho entre os dentes,
vestida de amarelo,
mimosa sorrindo, resplandecente.

Não leias livros tontos,
não contes histórias absurdas,
não cedas às minhas sevícias,
antes vem, brandamente,
e esta noite chama.
À luz da velha vela,
brilha alto o sonho antigo.

Wednesday, October 24, 2007

El amor brujo, Manuel de Falla

Shakti - Shiva, coreografia de Maurice Béjart, 1969.

Fragmento I

A minha alma é idólatra e ama os deuses.
Vestidos de flores, coroados de pássaros,
sátiros e ninfas, anjos e demónios,
esparramados pelo verde,
liquefazendo-se em azul,
ardendo em chamas de oiro e sangue negro
como o coração da Natureza.

Monday, October 22, 2007

Leonard Cohen - Anthem - Nature

Fragmento XV

Frágil e esquiva
como uma donzela
de outras eras
esvoaça na penumbra da sala
a tua lembrança,
Mãe!
As horas cobriram de prata e cinzas
o teu cabelo de oiro
mas não destruíram o encanto
virginal e casto da tua infância.
E em segredo no dedo
a aliança,
tu e eu permanecemos indiferentes
ao Tempo, séquito e carruagem
que à nossa porta batem,
pedem água e incautos seguem viagem.

http://ericblumrich.com/antiwar2.html

Sunday, October 21, 2007


Fragmento IV

Na encosta da montanha, alvejava,
destruída e abandonada,
uma casa de pedra e cal.
Dela se abeirava toda a sorte estranha de gentes.
Invisível eu pairava
no parapeito das janelas abertas,
no interior das portas escancaradas.
Via-as passar, parar e partir
seguindo o mesmo caminho.

Em silêncio, ela sofria,
- quem era ela eu não sei -
colhia gravetos e madeira na floresta,
calafetando fendas e feridas antigas.
Em vão.
Um vento mais agreste
e outra vez a nudez surgia.

Sentada na mesa do café,
aberta e ausente,
com um copo de água fria,
a forasteira sorvia a música
e o olhar distraído dos transeuntes.

Thursday, October 18, 2007

Maria Bethânia e Hanna Schygulla (01) - Emoções

Fragmento XXXI

Meu amor,
Minha alegria.
Minha taça de champagne,
borbulhante de ternura.
Minha nuvem de oiro azul,
estriada em cor de sangue.
Meu coração palpitante.
Minha sede de infinito,
perfumada de jasmim.
Ramo sou de marmeleiro.
Lírio aceso. Ventre em flor.
Corpo errante que uma alma habita
- eu própria tornada estranha -
rogo-te pragas, gemo e balbucio.
Em quatro tempos,
dança e sabre,
mão e chama.

Mensagem cifrada, algarismos trocados
em nota de rodapé:
não te pertenço ou amo.
Como sabes.

Wednesday, October 17, 2007

Nijinsky

Fragmento IX

Corre Eros pelos campos.
Vigiam as mulheres,
Não vá o deus fazer tropelias.
Espelhada no lago,
a sua sombra é como um sorriso terno,
impalpável e fugidia.

Anoitece.
Entre juncos e violetas,
Estremece ainda a luz do dia.

Nijinsky 1990 - Jorge Donn

Sunday, October 14, 2007

LE METEQUE - GEORGES MOUSTAKI

O judeu errante

Meu coração arde
como um incêndio na noite escura.
Vim de Espanha
Para lá de Málaga
Muito além de Sevilha.
É tarde. Não vens.
Estou sòzinho.
Na mesa o jantar esfria.

Marc Chagall, Eu e a Aldeia, 1911


A noiva judia

Oiço a morte
que bate à minha porta
Vem vestida de noiva
com um ramo de rosas brancas.

Thursday, October 11, 2007

Lord Byron, Londres, 1788, Missilonghi, 1824


O crepúsculo da tarde, Byron

Hora doce do trêmulo crepúsculo!
quantas vezes errante, junto à praia,
na solidão dos bosques de Ravena,
que se alastram por onde antigamente
flutuavam as ondas do Adriático,
Bosques frondosos, para mim sagrados
pelos graciosos contos do Boccácio,
pelos versos de Dryden; - quantas vezes
aí cismei aos arrebóis da tarde!

Tudo o que há de mais grato, a ti devemos,
ó Héspero: - ao romeiro fatigado
dás a hospedagem: - a cansado obreiro, a refeição da tarde; - ao passarinho,
a asa da mãe; - ao boi, o aprisco:
toda a paz que se goza em torno aos lares,
o quente, o meigo aninho dos penates,
descem contigo à hora do repouso,
tu coas n'alma o doce da saudade;
moves o coração, que a vez primeira
sai da terra natal, deixa os amigos,
e anda à mercê das ondas do oceano:
enterneces, enfim, o peregrino
ao som da torre, cuja voz sentida
como que chora o dia moribundo.

O príncipe do Oriente

O meu príncipe do Oriente
cantava sonetos à lua
e pedia-a em casamento.
Reinava sobre um bando de mendigos,
bandoleiros, homens de estrada,
que à socapa dele se riam.
Era jovem, soberbo e belo.
Tinha na cabeça uma pluma de avestruz,
entre os dedos uma pedra de cristal.
Cheirava, mesmo a léguas de distância,
a Lord Byron, romântico e apaixonado.
Eu amava-o, amava-o, amava-o...
Nos bailes entretinha-se com as moças do lugar,
convidando-as para as danças.
Era jovem, soberbo e belo.
Eu amava-o, amava-o, amava-o...
Sorriam-lhe as raparigas,
queriam-no as velhas.
As sobrancelhas tão espessas
pareciam florestas imensas,
o olhar de tão doce magoava.
Era um homem muito triste,
o meu príncipe do Oriente,
cantando sonetos à lua
e pedindo-a em casamento.

Comptine d'un autre été L'après midi

Monday, October 08, 2007

Dissecação Cerebral

Clépsidra,
almoço-jantar,
pequeno-almoço.

Abro o ventre
com um canivete:
Três ovos,
uma chiclete,
paté de camarão.
Torno a fechar.

Agulha, sangue,linha e coliseu.
Homenagem a Rembrandt.

Desmembrado o corpo.

A lição de anatomia do Dr. Tulp, Rembrandt, 1632


Sunday, October 07, 2007

Sei lá a razão

Não sei o que hei-de fazer. Experimentei todos os processos conhecidos e por minha conta até inventei alguns. Que falta de chá! Não preciso que me lembrem que tudo isto é um disparate pegado. Que a vida é uma chatice. Obstino-me e sei que é inútil. A parvoíce daquele homem no autocarro. Será que me tomam por lorpa ou quê? Poderia adjectivar indefinidamente: absurdo, estranho, abstruso, sei lá que mais! Hoje foi um dia a mais. Todos os meus dias estão sempre a mais. Não servem para nada. Não consigo ser feliz.

Thursday, October 04, 2007

O homem de Vitrúvio, Leonardo da Vinci, 1492


No túmulo de Leonardo

Esta lua mata-me. Lentamente, como convém a todos os supliciados. Durante horas fico imóvel, paralisado, com a cabeça encostada aos joelhos, em posição fetal, debaixo daquela luz incandescente e gelada. Uma pedra vermelha, incrustada no meu cérebro toca a rebate, brilha. É alguém que se aproxima. Impossível dormir. Impossível concentrar-me. Vertigens eléctricas percorrem-me o corpo, impedindo-me a saída. Não consigo mexer-me. É necessário mudar a página e fico preso à folha de papel, incapaz de a destruir.

Wednesday, October 03, 2007

Para que tu saibas

Ainda ontem à tarde perguntei-te: "Queres vir?". Repito-te: "Queres vir?"
Querida, não te faças desentendida. Ambos sabemos muito bem como é que tudo vai acabar. Nas contas do fim do mês. Na medida bem calculada de mentiras e verdades: "Não me peças dinheiro emprestado. Bem sabes que ando liso."
Estou esgotado. Não tenho energia para tocar o bandolim.
- Viste o meu creme de barbear? Achei piada à maneira como peneiraste a farinha. Não é muito vulgar. A cicatriz que tens nas costas como é que a arranjaste?
Amanhã. Por que será sempre amanhã que tudo vai acontecer? As cartas que o carteiro não trouxe hoje. As chamadas que o gravador telefónico não registou. Amanhã sim. Amanhã talvez.
- Viste a Isabela? Onde? No hospital!? Deitou-se a dormir e não acordou. Interessante. Detesto a irresponsabilidade com que as pessoas se suicidam. É um crime a maneira como incomodam os amigos. Ter que ir ao hospital. Logo hoje. Que maçada!
Às vezes paro um bocado e não me reconheço. Por isso tenho medo de parar. Medo de descobrir que estou deitado a dormir e talvez morto.

Monday, October 01, 2007

O último profeta

A tua cabeça pesada de desejo,
os teus olhos de fogo, obstinados,
fixam um sonho ausente.
Teus cabelos revoltos, ó visionário!
sibilam a linguagem do vento.
Eternamente inquieto, afastas-te.
E na areia do caminho,
pouco a pouco,
a sombra dos teus passos
se desvanece.

Friedrich Wilhelm Nietzsche, 1844-1900


Assim falava Zaratustra

Ó homem, toma cuidado!
Que diz a meia-noite profunda?
"Eu dormi, dormi...
e dum sonho profundo despertei:
O mundo é profundo,
mais profundo do que o pensava o dia.
Profundo é o seu mal...
A alegria... mais profunda do que o sofrimento do coração!"
A dor diz: "Passa!"
Mas toda a alegria quer a eternidade...
... quer a profunda, profunda eternidade!

Thursday, September 27, 2007

Wednesday, September 26, 2007

Fragmento XI

Entrei no circo
Sou a prima da bailarina
O pai dela é domador.
Eu cuspo fogo e faço malabarismos.
O público agradece.
A cada um o seu ofício.

Feliz sou com a minha arte
- quando os deuses me sorriem.

Sarah Bernhardt, 1877


Sunday, September 23, 2007

Declinações do poder

Eu sei Eu consinto Eu não posso
Tu sabes Tu pactuas Tu podes
Ele sabe Ela revolta-se Ele não pode
Nós sabemos Nós consentimos Nós não podemos
Vós sabeis Vós pactuais Vós podeis
Eles e elas sabem Elas revoltam-se Eles não podem

Anésia Pinheiro Machado, 1922


Tuesday, September 18, 2007

Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.

Fernando Pessoa, No Túmulo de Christian Rosenkreutz

Para o Actor

Ensimesmado no teu castelo alcandorado,
símbolo encarnado
de um deus - mistério que nunca vi,
através de ti toco o infinito,
o desejo nunca corrompido,
sem objecto, metafísico,
sexo puro.

Algures vago, vegeto,
entre bruma e nevoeiro
navego,
vou ao teu encontro.
Nunca te despiste.
Através de uma cortina
visiono as tuas sombras
e se ao morrer arranco
os véus que te cobriam
não me lamento se descobrir
que uma vez mais fui enganada.
E que por detrás e por diante
e pelos lados das sombras - projectos
que criaste
não havia nada, nem sombra de nada,
nada, nada,
apenas um corpo abjecto e perecível.

Monday, September 17, 2007

Friday, September 14, 2007

Escadaria Fugitiva

A menina voltou
A menina está triste
Dorme enrolada nos seus cobertores
O regresso é imprevisto.
O olho da serpente
enlaçado no pescoço.

Abandonada
a casa verde
dormita
escondida entre os pinhais.

Ela e o caminho
caíram por uma ribanceira.

O corpo jaz
despojado pela areia.
Afogado.

Sonâmbula, a alma vagueia
O mar, sempre o mar
em ondas
rebenta nos rochedos.

Madredeus - O Pastor

Wednesday, September 12, 2007

Um dia no campo, França, 1946. Realizador: Jean Renoir


Jacques Brel Les Bourgeois 1962 English subtitles

Os burgueses

A pequeno-burguesa saiu de sua casa
enfarpelada nas suas vestes de domingo,
vestido de seda, pérolas a condizer com o vestido,
artificiais e brancas.
Vai muito bonita, rosadita e fresca.
É loira, tem olhos verdes
e se eu pudesse roubava-lhe um beijo,
a mão esquerda entre os seios,
a direita escorregando pela anca
e outras mãos que eu não sei se tenho
para tocar os segredos escondidos
por debaixo do vestido
que me encanta e desconcentra
dos assuntos graves e sisudos,
coisas entre nós, homens,
política futebolística,
a relação entre o coração e a lua,
quantos centímetros mede o peito da Madonna,
a velha guerra da Bósnia-Hergovina,
as exéquias do cineasta preferido,
e mais ainda, mais ainda, mais ainda...
os honorários, os horários, as contas,
as dívidas, os créditos, os bancos,
a respeitabilidade que me é devida:
sou um burguês honesto, benevolente e sério.

Tuesday, September 11, 2007

Henrique Pousão (1854-1889). Senhora Vestida de Negro, (s/d)


A Sombra

Houve um tempo em que fui menina e saía de casa com o meu vestido branco na esperança de que me visses passar. Arrancava uma flor, miosótis quase sempre, no jardim municipal e trazia-a entre os dentes na esperança de que me visses passar.
Enfeitei-me com um chapéu preto e até lhe pus um laço cor-de-rosa porque sabia que gostavas de rosas. E brincava com as lágrimas nos meus olhos porque sabia que gostavas de me ver chorar. Nunca me senti verdadeiramente triste. Amava-te demasiado e só pensar que existias bastava para eu ser feliz.
Depois cresci e aprendi que a justiça existia e tu não eras justo. Eras um homem do cerimonial arcaico, do triângulo equilátero. Eu era o teu corpo bastardo e apenas querias me dominar. Por isso incendiei a tua casa, pilhei os teus haveres e parti. Para nunca mais voltar.

Sunday, September 09, 2007

Confissões de um artista menor

Por volta do ano 12 da nova era, descobri, pela força das circunstâncias, que o trabalho assalariado era fonte contínua de infortúnios. No dia 7 de Maio desse ano concebi o projecto glorioso de escapar a esse destino vulgar e decidi que seria artista. Comecei então com energia, zelo e alguma preguiça a tomar as providências para a minha iniciação. A primeira coisa que fiz foi consultar o boletim metereológico. Soube então que ia chover. Munida de um estetoscópio, adereço indispensável, fui ter com a população indígena decidida a descrever com pincéis e tintas a relação da chuva com as pulsações cardíacas. Efectivamente, as pessoas tinham um ar espapaçado e parecia que andavam com as baterias descarregadas. Solicitamente, convencia-as que o bicarbonato de sódio com duas gotas de cianeto era o melhor que havia para a indigestão, fenómeno a que a chuva predispunha em naturezas com electricidade negativa. Não me ligaram nenhuma. Fui para a igreja pregar: " Eu sou artista e tenho alma de poeta e Fernando Pessoa, ele mesmo, único nas suas diversas variações e fugas, veio do inferno para me iniciar!" Não me ouviram os peixes quanto mais as humanas criaturas. Desfiz o engano. Meti os pés pelas mãos. Foi tudo mentira. Entrei na fábrica. Faço parte da engrenagem. Pontapique. Pontapique. Pontapique. Pá. Pontapique. Pontapique. Pontapique. Pá! Quando é que esta merda vai acabar? Etecetera... Etecetera e tal... Etecetera...

Thursday, August 30, 2007

Coração

Voou o pequeno pássaro
que se abrigava nos meus ramos.
Ele é feliz
Eu estou triste
Deixou-me nas mãos um presente
uma caixinha de música
envolta em seda azul.

Nessa Rua

Tuesday, August 28, 2007

O Mago do Relógio

Jamais será dia.
Hoje não sou aquele que sou.
Amanhã não sei se existirei.
Ontem aconteceu-me algo esquisito.
Acordei sonhando que morria.

De dor teço o meu palácio,
Mago do relógio,
Dono de Horas Perdidas,
O verde pela esperança,
O roxo para a despedida,
Amor avaro
das minhas noites de agonia.

Carlos Paredes- Verdes anos

dias vão, dias virão, mas os verdes anos não...

Wednesday, August 15, 2007

Para a minha mãe

Não quero mais estar pendurada no alto desta cruz. Doem-me os braços. Quero sair! Já! Estou cansada de todos os sentidos. Quero antes o desbragamento de todos os sentidos. Mãe!
Procurei tantas vezes aquela caixinha, mãe! Sabes qual? A quadrada. A redonda. A elíptica. A que me enquadrasse tão perfeitamente como o teu corpo, mãe, antes de eu nascer. Não encontrei caixa nem caixão onde coubesse.
Provavelmente é a última vez que te escrevo. Sei que vais morrer. Não posso dizer que lamente. Afastaste de mim todos os que tentaram se aproximar. Tinhas medo que eu me corrompesse. Que divertido!
Tu sabes mamã. Eu estou apaixonada . Não te digo por quem. Suspeito que sabes. Talvez que nem eu própria saiba. Ele está a caminho e vem. Eu vou partir.
Quem é ele? O rapaz da música. O rapaz da gaita de foles. O actor. O bailarino. O assassino. O jornalista de olhos azuis. Meigo e terno. O louro, o moreno, o de olhos verdes. O carpinteiro. O pobre, o rico, o sem casa, o louco, o irmão. Todo aquele que procura abrigo. Mãe! Eu sou uma casa!

Douleur de Vivre

Ouves-me mãe! Estou farta de ser portuguesa. Quero ser huguenote e nascer numa aldeia de França. Não saber do mar e mergulhar de paraquedas no centro de Metropolis. Engolir sapos e triturar lagartos.
Às duas e meia da manhã sou apanhada em flagrante com uma trincha e um balde na mão, confessando-me nas paredes dos bares, nos muros da rua, cidade a dentro. Estou tramada. Sim, sou eu!
Esperma, esperma meu,
quem é mais potente do que eu?
Entre nabiças quem tem caralho sou eu.

Laranja tropical
Bonecacaralho!

Le visage a disparu, brulé, insensée..
Passa a batata enquanto está fervente.

Limousine
Papá, Pipi, Popó
Morte à Morte

Siegfried, Lorena, Chateau.
Pushkin, Ingvild, Atchim!
Danke Sie.

Enquanto a morte for possível
Há esperança para mim.

Mãe, Jorge Ferreira

o amor mais profundo

Profecias de Pedro Godinho, sapateiro por inspiração divina e anarquista

I
Amado bispo, grande inquisidor, tirano adorado
a tua vaca gorda saúda-te. As pátrias findam.
A terra nunca. É inesgotável.

II
O salvador da pátria, venha ele, Nero ou Caracala,
destruir a besta, a burra de odres de leite,
seiva que alimenta indiferente,
cristãos, chiitas, vítimas,
ganzados, polícias, culpados,
cadelas, carrascos, maus perdedores,
proxenetas, parturientes e apaixonados.

III
Cultivo as minhas flores.
Não meto a colher em terra alheia.
Antes servir amos com dinheiro
que governantes tesos e egoístas.
Viva a Europa Unida e os patrões da Alemanha!

A menina de Gomide

É uma rapariga do campo, pujante e tímida. Se não lhe prestassem atenção nunca falaria. Por desejo. Talvez vergonha. Nunca sabe o que há-de dizer, se é a mãe que está doente, se chove, da ninhada de porcos acabada de parir. Acusam-na de ser altaneira e prestamista. É mentira. Ninguém menos do que ela conhece o valor do orgulho ou do dinheiro. Tem um mealheiro onde vai juntando uns tostões para quando se casar. Dinheiro que nunca será seu. Será da mãe, será do marido, será dos filhos, seu nunca. De quando em quando rouba umas laranjas do quintal da Sê Maria porque sabe que acabarão por cair se ninguém lhes deitar mão. É loura e tem olhos azuis como a avó morta há muito, que Deus Nosso Senhor a guarde em bom lugar. Os rapazes da freguesia requestam-na pouco. É acanhada e nada desenvolta. Não gosta muito de trabalhar e mil e uma vez sua mãe a chama antes que ela se decida a ver o que o gato faz na cozinha. Se fareja as sardinhas escondidas no armário ou come as bolachas do jantar com a cevada. Entretanto caminha nos campos vazia, colhe anémonas, prega partidas às galinhas, roubando-lhes os ovos, comendo-os com batatas fritas e pepsi-cola pela noite dentro. É louca e ignora-o e eu amo-a muito. Casaria com ela se um dia as cadelas parissem anjos, os frades fornicassem cabras e eu fosse algo mais que um ser pensante.

Era uma vez

Era uma vez uma menina que caiu num poço. Ninguém deu por nada. Nem ela que não se sabia acordada. Pensou sonhar. No alto do céu uma estrela sorria. Devagarinho, muito devagarinho a noite abriu os olhos e estendeu as suas asas azuis laminadas de violinos.

Friday, July 27, 2007

Fábula sobre o Amor, o Conhecimento e a Liberdade

O cão conhece o dono. Quem é o dono do cão?
O dono é aquele que possui o registo de propriedade do cão.
O dono é aquele que treina o cão.
O dono é aquele que dá de comer ao cão.
O cão abandonado rouba para se alimentar.
O cão selvagem ataca e caça.
O cão sem dono é selvagem ou livre?
O homem que se liberta torna-se selvagem?
O cão tem dono. O homem não tem dono.
O cão serve ou é servido?
O homem serve ou está estragado?
Deus manda mas não quer ou quer e não manda?
Deus quer mas não manda.
O homem manda mas não quer.
O homem sonha e deseja.
Deus sonha mas não deseja o pecado.
Deus vê mas nada faz.
O homem faz mas é cego.
Deus olha e percebe.
O homem reconhece-se.
O cão acorda.
Bom dia querido!