Monday, November 19, 2007

Noli me tangere

Logo à primeira vez que a vi, a imagem capturou-me e, várias vezes, tergiversando, regressava a ela. Tinha a sensação esquisita de que havia ali um enigma à espera de ser decifrado. Pouco a pouco, fui entrando dentro do quadro tentando perceber qual era o oculto mistério que me fascinava. Estranho, pensava eu, verdadeiramente estranho.
Das primeiras vezes só olhava para ela ali interrompida com o abraço suspenso nos braços como uma criança sem pai. Ele, impassível, dedo espetado para cima, disfarçado de jardineiro, a pá ao lado como se há pouco tivesse acabado de remexer na terra. Abrindo sulcos?, regos?, semeando?, interrogava-me eu.
É óbvio que eu conhecia a melancólica e estafada estória. Ela amava-o. Ele queria partir, comprar cigarros, prometendo que voltava, mas nunca regressou. Sentia pena, uma secreta dorzinha roendo-me do lado esquerdo como se fosse eu que tivesse perdido alguém que amasse.
A seguir veio a raiva: "Pérfido, mentiroso, falso, hipócrita!" gritava eu para dentro, emudecida por um secreto pudor que me impedia de exteriorizar o que sentia. Um consumado actor, em suma!, admirava-me eu, em surdina com os meus botões, no sótão, fumando um cigarro às escondidas.
Depois o silêncio instalava-se e a imagem continuava à minha frente como se permanecesse à espera de algo que eu ignorava.
Devagarinho, comecei a olhar para o homem à minha frente, tentando decifrar o que dizia. Pus-me no lugar dele, perdendo-o de vista para ver apenas o caminho que ele apontava e, sem me aperceber como, dei por mim a murmurar: "Cala-te Leninha! Não sabes para onde vou. Não sei se voltarei. Por que teimas em seguir-me se não sabes para onde vou?"
A imagem, repentinamente, iluminava-se, ganhava movimento e sentido, fluindo dos meus olhos e a eles regressando num hipnótico reconhecimento. Aficcionadamente, regressei muitas vezes, inventando diálogos infindos, conversas intermináveis, murmúrios indefiníveis, mudando várias vezes de posição, de perspectiva, adequando sempre o discurso à figura que através da realidade da imagem, eu, apaixonadamente, visava, para sofrer mais, gozar melhor. Brincar ao esconde-esconde tornara-se um jogo divertido que me enchia de um júbilo perverso pincelado algumas vezes por roxa melancolia e negra suspeita: "Ao vencer não terei eu perdido? Terei eu ao menos vencido?"
Aos poucos, lentamente, o cansaço entrava em cena, desfazendo o secreto encantamento que me prendia ao quadro. "Noli me tangere". Sim, eram essas as palavras certas. Acertadas, finalmente, todas as contas entrelaçadas do meu colar de pérolas!

Lembras-te ainda?
Era assim não era?

Com este jogo de escondidas
o tempo ia passando
e, se acaso, me descobrias,
célere eu corria
pelo labiríntico jardim.
E, atrás do muro, disfarçado,
parado, observava-te, espreitando,
aturdida, procurando,
o buxo, o arbusto ou a sebe,
atrás da qual eu me escondia.

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