Thursday, March 06, 2008

Fragmento LXXVII

Quando dei pelo acontecimento estava de cama com uma pneumonia. Era o 25 de Abril. Fiquei banzada. Não fazia a mínima ideia de que tinha vivido durante quase três anos em ditadura (antes não vivia em Portugal). Os nossos camaradas expulsaram os fascistas do poder, nós, na escola saneámos os professores. Fazíamos piquetes, assembleias, manifestações, a rua virara festa, a escola era alegria. Quem ensinava o quê, a quem, porquê? Tudo era questão, diálogo, discussão, a vida não era a simplicidade do pequeno-almoço, do sono a seguir ao jantar, era problema, vigilância, debate. A partir de então passei a estar atenta, despertava de manhã e continuava a espertar durante o dia. Foi por essa altura, mais ou menos que comecei a filosofar por conta própria.
O meu primeiro professor de filosofia era uma pessoa espantosa. Não lembrava ao diabo! Aparecia nas aulas todo vestido de vermelho, emoldurado pelo fumo dos cigarros, pairando acima de nós como um ser do outro mundo. Com ele vinham outros com nomes esquisitos, difíceis de pronunciar - Kant, Heidegger, Husserl, sei lá quem mais.
Kant já eu conhecia porque era uma rapariga curiosa e gostava de conhecer a vidinha de toda a gente e entre os dramas de Shakespeare e as aventuras do Sandokan na Malásia, lá tinha arranjado algum tempo para as biografias. Numa delas tinha topado com o senhor Kant e descobri que tinha um tique esquisito. Saía de casa, todos os dias às oito horas em ponto, reguladas pelo relógio da cidade, para dar um passeio pelo jardim municipal, se não era pelo jardim era pelos arredores.
(Foi há tanto tempo que já não me lembro muito bem!)
Sei é que a vizinha pasmava-se de o ver sair todos os dias à mesmíssima hora, tão certinho como o relógio da cidade. A senhora nem precisava ouvir as badaladas: "O senhor Kant saiu de casa. São oito horas!"
Não, não era a regularidade - as minhas aulas também eram assim certinhas, controladas pelo relógio - era porque ele ia dar um passeio. Não conseguia perceber como é que se podia ir espairecer, apanhar ar, desenfadar-se enfim e agir como um máquina. Tão regular e controlado como o relógio da cidade, tão inumano como um autómato.
Mas não era só de Kant que o professor falava nas aulas. Era do Ser e da Casa do Ser.
Durante vários dias andei absorta e pasmada, procurando pela criatura. Não era o João, não era a Maria, não era o Manuel, não era um gato branco, não era Deus, o que seria então? Desisti como a raposa da fábula e conclui com os meus botões: "È apenas uma palavra. Nada mais do que uma palavra."
Palavra!? Substantivo ou verbo?
Raciocinei rapidamente: "Substantivo não pode ser, não existe, não é criatura, não é ente, não é nada! Só pode ser verbo".
(E Verbo era Ele).
Mas não tinha imagens para o Verbo desencarnado de Heidegger e desinteressei-me.
Eu gostava das imagens e de inventar imagens. No livro de História havia muito mais imagens e mesmo que não estivessem lá eu via-as em todo o lado.
Napoleão no Egipto!
(Não, não é o actual chefe de Estado francês!)
Imponente, no sopé de um monte de areia, contemplando face a face a Esfinge, emproado, com a mão direita sob o uniforme e a esquerda, atrás das costas, a voz tonitruante, proclamando qualquer coisa como: "Soldados diante destas pirâmides, milhares de anos de História vos contemplam!".
Empolgante! Até eu sentia o meu coração palpitar,aguilhoado pelo desejo, ligado à corrente, electrizado, capturado pela imagem.
(Em frente e para a frente, avante camarada avante, força Portugal, junta a tua à nossa voz...).
Tempos depois descobri o cinema e o teatro de Brecht: "Querem ir para longe da mãe, seus diabos,e meterem-se na guerra, como cordeiros na boca do lobo..."
(Corajosa mulher! Não, eu também não deixarei que matem os meus filhos. Mas eles morreram, morrem e morrerão todos os dias!)
E o cinema? O apelo, a magia, a sedução do cinema:"Play it Sam! Play it again!".
Se pudesse voltaria atrás? Executaria os mesmo gestos, os mesmos actos? Não sei...
Narciza Felizarda, Crónicas de Antanho

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