Thursday, August 30, 2007

Coração

Voou o pequeno pássaro
que se abrigava nos meus ramos.
Ele é feliz
Eu estou triste
Deixou-me nas mãos um presente
uma caixinha de música
envolta em seda azul.

Nessa Rua

Tuesday, August 28, 2007

O Mago do Relógio

Jamais será dia.
Hoje não sou aquele que sou.
Amanhã não sei se existirei.
Ontem aconteceu-me algo esquisito.
Acordei sonhando que morria.

De dor teço o meu palácio,
Mago do relógio,
Dono de Horas Perdidas,
O verde pela esperança,
O roxo para a despedida,
Amor avaro
das minhas noites de agonia.

Carlos Paredes- Verdes anos

dias vão, dias virão, mas os verdes anos não...

Wednesday, August 15, 2007

Para a minha mãe

Não quero mais estar pendurada no alto desta cruz. Doem-me os braços. Quero sair! Já! Estou cansada de todos os sentidos. Quero antes o desbragamento de todos os sentidos. Mãe!
Procurei tantas vezes aquela caixinha, mãe! Sabes qual? A quadrada. A redonda. A elíptica. A que me enquadrasse tão perfeitamente como o teu corpo, mãe, antes de eu nascer. Não encontrei caixa nem caixão onde coubesse.
Provavelmente é a última vez que te escrevo. Sei que vais morrer. Não posso dizer que lamente. Afastaste de mim todos os que tentaram se aproximar. Tinhas medo que eu me corrompesse. Que divertido!
Tu sabes mamã. Eu estou apaixonada . Não te digo por quem. Suspeito que sabes. Talvez que nem eu própria saiba. Ele está a caminho e vem. Eu vou partir.
Quem é ele? O rapaz da música. O rapaz da gaita de foles. O actor. O bailarino. O assassino. O jornalista de olhos azuis. Meigo e terno. O louro, o moreno, o de olhos verdes. O carpinteiro. O pobre, o rico, o sem casa, o louco, o irmão. Todo aquele que procura abrigo. Mãe! Eu sou uma casa!

Douleur de Vivre

Ouves-me mãe! Estou farta de ser portuguesa. Quero ser huguenote e nascer numa aldeia de França. Não saber do mar e mergulhar de paraquedas no centro de Metropolis. Engolir sapos e triturar lagartos.
Às duas e meia da manhã sou apanhada em flagrante com uma trincha e um balde na mão, confessando-me nas paredes dos bares, nos muros da rua, cidade a dentro. Estou tramada. Sim, sou eu!
Esperma, esperma meu,
quem é mais potente do que eu?
Entre nabiças quem tem caralho sou eu.

Laranja tropical
Bonecacaralho!

Le visage a disparu, brulé, insensée..
Passa a batata enquanto está fervente.

Limousine
Papá, Pipi, Popó
Morte à Morte

Siegfried, Lorena, Chateau.
Pushkin, Ingvild, Atchim!
Danke Sie.

Enquanto a morte for possível
Há esperança para mim.

Mãe, Jorge Ferreira

o amor mais profundo

Profecias de Pedro Godinho, sapateiro por inspiração divina e anarquista

I
Amado bispo, grande inquisidor, tirano adorado
a tua vaca gorda saúda-te. As pátrias findam.
A terra nunca. É inesgotável.

II
O salvador da pátria, venha ele, Nero ou Caracala,
destruir a besta, a burra de odres de leite,
seiva que alimenta indiferente,
cristãos, chiitas, vítimas,
ganzados, polícias, culpados,
cadelas, carrascos, maus perdedores,
proxenetas, parturientes e apaixonados.

III
Cultivo as minhas flores.
Não meto a colher em terra alheia.
Antes servir amos com dinheiro
que governantes tesos e egoístas.
Viva a Europa Unida e os patrões da Alemanha!

A menina de Gomide

É uma rapariga do campo, pujante e tímida. Se não lhe prestassem atenção nunca falaria. Por desejo. Talvez vergonha. Nunca sabe o que há-de dizer, se é a mãe que está doente, se chove, da ninhada de porcos acabada de parir. Acusam-na de ser altaneira e prestamista. É mentira. Ninguém menos do que ela conhece o valor do orgulho ou do dinheiro. Tem um mealheiro onde vai juntando uns tostões para quando se casar. Dinheiro que nunca será seu. Será da mãe, será do marido, será dos filhos, seu nunca. De quando em quando rouba umas laranjas do quintal da Sê Maria porque sabe que acabarão por cair se ninguém lhes deitar mão. É loura e tem olhos azuis como a avó morta há muito, que Deus Nosso Senhor a guarde em bom lugar. Os rapazes da freguesia requestam-na pouco. É acanhada e nada desenvolta. Não gosta muito de trabalhar e mil e uma vez sua mãe a chama antes que ela se decida a ver o que o gato faz na cozinha. Se fareja as sardinhas escondidas no armário ou come as bolachas do jantar com a cevada. Entretanto caminha nos campos vazia, colhe anémonas, prega partidas às galinhas, roubando-lhes os ovos, comendo-os com batatas fritas e pepsi-cola pela noite dentro. É louca e ignora-o e eu amo-a muito. Casaria com ela se um dia as cadelas parissem anjos, os frades fornicassem cabras e eu fosse algo mais que um ser pensante.

Era uma vez

Era uma vez uma menina que caiu num poço. Ninguém deu por nada. Nem ela que não se sabia acordada. Pensou sonhar. No alto do céu uma estrela sorria. Devagarinho, muito devagarinho a noite abriu os olhos e estendeu as suas asas azuis laminadas de violinos.