Wednesday, November 28, 2007

The Doors, Touch Me

Mephist.h'eros

Jogo evidentemente,
sou jogador,
um amador perverso,
estremeço e abandono,
prendo e tiranizo,
os que ao meu leito se confiam.

Ladrão ou saltimbanco,
espreito.
Aguardo o momento oportuno.

Thursday, November 22, 2007

Fragmento IV

Aquele que É, é em demasia.

Funeral March for a Marionette

Malevich, Suprematismo

Monday, November 19, 2007

Noli me tangere, Correggio, 1493-1534

Amália, Estranha forma de vida (Expo 98)

Noli me tangere

Logo à primeira vez que a vi, a imagem capturou-me e, várias vezes, tergiversando, regressava a ela. Tinha a sensação esquisita de que havia ali um enigma à espera de ser decifrado. Pouco a pouco, fui entrando dentro do quadro tentando perceber qual era o oculto mistério que me fascinava. Estranho, pensava eu, verdadeiramente estranho.
Das primeiras vezes só olhava para ela ali interrompida com o abraço suspenso nos braços como uma criança sem pai. Ele, impassível, dedo espetado para cima, disfarçado de jardineiro, a pá ao lado como se há pouco tivesse acabado de remexer na terra. Abrindo sulcos?, regos?, semeando?, interrogava-me eu.
É óbvio que eu conhecia a melancólica e estafada estória. Ela amava-o. Ele queria partir, comprar cigarros, prometendo que voltava, mas nunca regressou. Sentia pena, uma secreta dorzinha roendo-me do lado esquerdo como se fosse eu que tivesse perdido alguém que amasse.
A seguir veio a raiva: "Pérfido, mentiroso, falso, hipócrita!" gritava eu para dentro, emudecida por um secreto pudor que me impedia de exteriorizar o que sentia. Um consumado actor, em suma!, admirava-me eu, em surdina com os meus botões, no sótão, fumando um cigarro às escondidas.
Depois o silêncio instalava-se e a imagem continuava à minha frente como se permanecesse à espera de algo que eu ignorava.
Devagarinho, comecei a olhar para o homem à minha frente, tentando decifrar o que dizia. Pus-me no lugar dele, perdendo-o de vista para ver apenas o caminho que ele apontava e, sem me aperceber como, dei por mim a murmurar: "Cala-te Leninha! Não sabes para onde vou. Não sei se voltarei. Por que teimas em seguir-me se não sabes para onde vou?"
A imagem, repentinamente, iluminava-se, ganhava movimento e sentido, fluindo dos meus olhos e a eles regressando num hipnótico reconhecimento. Aficcionadamente, regressei muitas vezes, inventando diálogos infindos, conversas intermináveis, murmúrios indefiníveis, mudando várias vezes de posição, de perspectiva, adequando sempre o discurso à figura que através da realidade da imagem, eu, apaixonadamente, visava, para sofrer mais, gozar melhor. Brincar ao esconde-esconde tornara-se um jogo divertido que me enchia de um júbilo perverso pincelado algumas vezes por roxa melancolia e negra suspeita: "Ao vencer não terei eu perdido? Terei eu ao menos vencido?"
Aos poucos, lentamente, o cansaço entrava em cena, desfazendo o secreto encantamento que me prendia ao quadro. "Noli me tangere". Sim, eram essas as palavras certas. Acertadas, finalmente, todas as contas entrelaçadas do meu colar de pérolas!

Lembras-te ainda?
Era assim não era?

Com este jogo de escondidas
o tempo ia passando
e, se acaso, me descobrias,
célere eu corria
pelo labiríntico jardim.
E, atrás do muro, disfarçado,
parado, observava-te, espreitando,
aturdida, procurando,
o buxo, o arbusto ou a sebe,
atrás da qual eu me escondia.

Friday, November 16, 2007

Chopin, Nocturno

Florbela Espanca, 1894-1930


Florbela Espanca, Charneca em Flor

O meu Destino disse-me a chorar:
"Pela estrada da Vida vai andando,
E, aos que vires passar, interrogando
Acerca do Amor, que hás-de encontrar."

Fui pela estrada a rir e a cantar,
As contas de meu sonho desfiando...
E noite e dia, à chuva e ao luar,
Fui sempre caminhando e perguntando...

Mesmo a um velho eu perguntei:
"Velhinho,Viste o Amor acaso em teu caminho?
"E o velho estremeceu... olhou... e riu...

Agora pela estrada, já cansados,
Voltam todos p'ra trás desanimados...
E eu paro a murmurar: "Ninguém o viu!..."

Idílio romântico

Já se passou tanto tempo. Lembras-te? Eu era uma miúda e usava tranças. Dormia todas as noites contigo. Sentia-me feliz. Depois perdi-te, engolida pela voragem do tempo. Muitas vezes acordei de manhã, chorando. Sonhava que vinhas ter comigo e eu não te reconhecia. Eras um soldado barbudo e feio. Um velho resistente de guerras muito antigas como Che Guevara. Esqueci que o tempo tinha passado e não podias mais ser o principezinho louro guardado nas minhas recordações.Esta noite acordei banhada em suores frios, chamando por ti. Apetecia-me estar contigo amadurecendo, como outrora, no calor do teu peito. Soldadinho de chumbo, eu sou a tua bailarina. De noite adormeço buscando a tua presença no labirinto dos meus sonhos. De dia caminho cega e a vida rouba-me tudo. Nenhuma águia traz-me nas asas um pouco de luz. Hienas e chacais são os meus companheiros de estrada. Chamam-me doida. Habituei-me ao sofrimento mas estou quase morta. Fazes-me falta. Diz-me que não foi fingimento o teu beijo quando nos reencontramos em Veneza, por um acaso que não sei explicar, a nossa noite de núpcias, por detrás das cortinas vermelhas, em segredo, no palácio do Doge. Continuo no teu encalço e sei que em Espanha esperas por mim com um anel no dedo e veneno dentro desse anel. Para sempre tua.
rascunho

Wednesday, November 14, 2007

Ravel, Pavane Pour Une Infante Defunte, Grave Of The Fireflies AMV

Antero de Quental, 1864


Antero de Quental, noivado bárbaro

Oh! o noivado bárbaro! o noivado
Sublime! aonde os céus, os céus ingentes,
Serão leito de amor, tendo pendentes
Os astros por docel e cortinado!

As bodas do Desejo, embriagado
De ventura, afinal! visões ferventes
De quem nos braços vae de ideais ardentes
Por espaços sem termo arrebatado!

Lá, por onde se perde a fantasia
No sonho da beleza: lá, aonde
A noite tem mais luz que o nosso dia;

Lá, no seio da eterna claridade,
Aonde Deus à humana voz responde;
É que te havemos abraçar, Verdade!

Carta de um soldado à sua amada

São cinco e meia da tarde. O vento corre em torvelinhos. As árvores batidas pela tempestade jazem pelos campos. Volta. Ouço ainda o murmúrio do rio. Lá fora do outro lado de dentro, talvez encontres algum abrigo.
Tenho uma mão mutilada. Lembras-te? Foste tu numa noite de raiva e desejo. Acusaste-me do roubo do teu colar de contas prateadas, a única jóia que possuías. Apanhaste a tesoura do armário onde a tinhas escondido para que eu não a encontrasse e bateste e esfacelaste até que a minha mão se transformou num farrapo. Não te comoveste. Rias-te ainda.
Às escondidas mamavas da minha garrafa de whisky e choravas baixinho para que ninguém te ouvisse. Ninguém te ouvia. Excepto eu.
Amaldiçoei o teu nome e jurei destruir-te. Não encontro a paz.
Ontem parecias uma criança. Sentavas-te ao meu colo e querias brincar. Nunca precisei de te pedir nada. Davas-me tudo. Porque mudaste tanto? Não consigo compreender o que se passou naquela noite. Atraíste-te com os teus meneios de princesa-escrava judia. Abandonei-me a ti e foi então que traíste. Nunca soube muito de ti. É verdade o colar de contas prateadas?
Tento reconstruir a minha vida mas dói-me o absurdo. Não sei se és culpada ou se eu sou inocente. Procurei por ti em todos os bares e vi-te assomando a todas as janelas, cruzando-me contigo em todas as esquinas. Fui expulso do meu perfeito paraíso e abismado permaneço em ti. Gostava de te voltar a encontrar.

Rachmaninoff, Russian Bell

Monday, November 12, 2007

Fernando Pessoa, "em flagrante delito"


Álvaro de Campos, Vilegiatura

...
Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,
Como e onde a tesoira e o dedal de uma outra.
Cismavas, olhando-me como se eu fosse o espaço.
Recordo para ter em que pensar, sem pensar.
De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo.
Olhaste conscientemente para mim, e disseste:
"Tenho pena que todos os dias não sejam assim" -
Assim, como aquele dia que não fora nada...

Ah, não sabias,
Felizmente não sabias.
Que a pena é que, feliz ou infeliz,
A alma goza ou sofre o íntimo tédio de tudo,
Consciente ou inconscientemente,
Pensando ou por pensar -
Que a pena é essa...

Lembro fotograficamente as tuas mãos paradas.
Molemente estendidas.
Lembro-me, neste momento, mais delas do que de ti.
Que será feito de ti?
Sei que no formidável algures da vida,
Casaste. Creio que és mãe. Deves ser feliz.
Porque o não haverias de ser?

Só por maldade...
Sim, seria injusto...
Injusto?

(Era um dia de sol pelos campos e eu dormitava, sorrindo).
... .... .... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
A vida...
Branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar.

Carta de Ofélia Baby ao seu amado

Querido bozeguinho,

Nunca te percebi. O inglês não é o meu forte. Se falasses russo eu batia com as portas e punha-me à janela.
Sou surda, muda, mas não sou cega. Deus te pague. Eu não tenho cheta. Tout quand même je t'adore.
Um piano não é uma casa. Uma casa não é um bandolim. Quando escovo os dentes penso: onde foi que pus o pente?
Tenho tudo fechado. Sete chaves e um cadeado. E se te escrevo sou tua amiga. Um dia não são dias e amanhã vou à florista.
Recado: não percas tempo comigo. É impossível venceres ou mesmo convenceres. Recebe assim (não sei se devo alguma coisa) o tributo da minha ternura que é imortal e eterna, mas que de vez em quando, em dias de aniversário (a Carlita faz amanhã anos), cede à trivialidade de se manifestar nestas moedas de vil metal que se chamam palavras.
Vê se te lembras! De noite todos os gatos são pardos. Miosótis são as flores que prefiro. Ou às vezes tulipas amarelas.
Nunca esqueças! Sou filha do dia, irmã do vento. Malfadado é o dia! tempestuosos correm os ventos.
Por favor não me leves a sério. Se eu um dia me levar a sério, acabo morta: de susto, medo ou pasmaceira.
Bozeguinho, é verdade que o sol nasce, morre, levanta-se e põe-se? Todos os dias? E eu bozeguinho e eu quantos dias?
Perdi os meus óculos de sol pela segunda vez. A demasiada claridade mete medo. Por isso escrevo. Tenho a mania da perseguição mas acontece que não percebo. O sinal será de mau agouro?

Thursday, November 08, 2007

NAVIO NEGREIRO SURREAL

Delírio Báquico

Era uma casa estranha
habitada apenas por fêmeas
feias e esfarrapadas.
À varanda, uma mulher gorda e celulítica,
velha professora de bioquímicas,
desdentada, o vestido aberto e ao abandono,
gritava obscenidades às gentes que passavam.
Ninguém percebia o que dizia
mas a imagem era traumática
para aqueles que a viam semi-nua e doente.

Pela cidade circulavam boatos:
eram virgens loucas que esperavam
pelo Outono, a vinda da Criança,
o Salvador.
A construção arruinada e entulhada de lixo
tinha corredores obscuros,janelas fora do sítio,
situadas no subsolo,
abertas para os canais de esgoto
de todas as vilas e cidades,
situadas na linha do arquetípico meridiano
que corre entre a lua e a Cidade Antiga,
no centro e na periferia
do quixotesco e magnífico Império Lusíada.

Viagens do Tambor

Bacante, William-Adolphe Bouguereau, 1855


Tuesday, November 06, 2007

Yukio Mishima, 1968


Fragmento XXI

Crisântemo, belo crisântemo,
triste e escuro,
veloz o dardo,
banhou-te em sangue.

Monday, November 05, 2007

A jangada de Medusa, Géricault, 1816


A prisioneira da lua

Carantonha de ar feroz,
animal trágico,
monstro, víbora, canibal,
escaravelho alado,
recita para mim
o estribilho atroz.

Pan! Pan! Pan!

Aconteceu mil cento
e uma vez,
num reino de outrora,
de aquém e de além mar,
de retalhos todo feito,
uma princesa sem nome
que alucinada dormia,
embebida em seus sonhos.

Foi a bela
pela noite de olhos escuros
devorada em carne viva
e definhando jovem,
muito jovem,
no seu palácio de cristal e âmbar
acreditava morrer longe,
muito longe,
dentro duma jangada africana,
perdida no mar das Caraíbas,
em pleno centro do coração atlântico.

Saturday, November 03, 2007

Blue Velvet - Trailer

Fragmento XLV

À entrada das grutas
o mar protege os seus segredos.
Mesmo com asas quebradas
o corpo sonha a cópula perfeita,
o assassino com mãos de mulher,
a morte violenta,
o paraíso soterrado
nas ruas asfaltadas da cidade,
onde deambulam sonâmbulos
anjos carregados como escravos
de sangue, suor e medo.