Thursday, February 21, 2008

Fragmento XVII

Sou medrosa desde a raiz dos cabelos até à planta dos pés. Sempre fui assim. Sempre tive medo. Medo de falar porque ignorava o segredo das palavras. Medo de mexer porque partia. Medo de partir porque abandonava. Medo de agir porque sentia. Mentiram-me sempre. A vida não é um dom de amor mas um acidente numa berma da estrada do tempo. À minha volta ouço os gritos dos seres torturados, os berros dos espancamentos, as gargantas mutiladas. Do Grande Inquisidor percepciono apenas as aparências, os vestígios, as sombras, os sinais:
A rapariga no guichet de olhos mortiços, a raiva escondida do motorista do autocarro, as lágrimas da criança violentada, a professora tirânica, o médico sem alma, a mulher de limpeza com os joelhos cheios de reumatismo, o empregado de café arrogante, o ministro incompetente, o paternalismo desdenhoso do subchefe de polícia, o banqueiro avaro, o silêncio oportuno, a gargalhada seca e nervosa, o grito abafado na garganta...

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