Saturday, December 08, 2007

Fragmento XX

Tudo começou com o meu primeiro amor. Na igreja da minha primeira comunhão. Nesse dia, terna e ardente, desejei esse deus de paixão e morte. A vida é monstruosa, pensava eu, um rio apodrecido onde flutuam, à deriva, corpos mortos, e orava baixinho: "J'ai besoin du miel de ta bouche, du chaleur de ta peau, du pain de tes mains, du ciel de tes yeux ouverts." Esperava um sinal. Não veio.
Para me curar dessa pancada, cuja mancha perseguiu-me sempre, rigorosa e ao sabor do acaso, construí uma muralha tão alta, longa e poderosa como a muralha da China e no espaço desse zero afectivo recompus-me, lentamente.
Durante esse tempo, possuída de terror e júbilo, senti-me uma vénus pré-histórica, grossa e grávida e, nas minhas noites de insónia, inventei outros deuses, criei heróis, seduzi demónios. Um dia, não sei como descobri, talvez por acidente, numa estrada, algures, no Sul, que o meu mundo não fazia sentido senão desses estreitos limites onde eu vivia escondida. Não me senti feliz ou triste. Se o mundo era um asilo de loucos, uma peça de teatro absurda, representada por actores esquizofrénicos ou paranóicos, uma projecção colectiva de deuses mortos que deambulavam pelo espaço de representação, invadido pelo escuro, tanto fazia. Aliás, gostava mais da minha loucura que da deles, pelo menos, era minha.
Aos outros, não os conhecia, sentados, assistindo, obscuros e ignotos, ao espectáculo. Nas minhas tardes de tédio, protegida pelas ameias do meu castelo de palavras, observava os seus gestos e classificava-os como objectos de marketing ou obras de arte, belas ou imperfeitas, que por um acaso magnífico possuíssem vida. Gostava de vê-los rodopiar no ar como poeira que um vento divino sacudisse e derrubasse no solo, depositasse nos telhados das casas, nas estátuas das praças dos jardins públicos.
Do meu mundo caótico excluí o sofrimento. Foi quando te conheci. E de noite chorei e esta manhã quando aventurei-me e saí, tinha os olhos vendados e caí no passeio. Caminhei pelas ruas da cidade como sonâmbula e trazia nas mãos a flor que me tinhas oferecido.

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