Monday, December 31, 2007

W.A.Mozart - Requiem(I.Introit II.Kyrie)

Fragmento X

Sombra espessa,
sombra móvel.
Sombra nos meus cabelos.

Friday, December 28, 2007

Álvaro de Campos, Dois Excertos de Odes (fins de duas odes, naturalmente), 30-06-1914

Vem, Noite antiquíssima e idêntica.
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

(…)

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados.
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.

A mulher do xaile negro

Ave de mau agoiro, harpia,
fome inextinguível,
garras afiadas,língua aguçada,
onde pressinta uma fraqueza,
ela ataca, vítima após vítima,
indiferente ao amor, ao sexo, à vida.
Algures ela espreita,
morte insaciável,
inteligência pura.

Thursday, December 27, 2007

Billie Holliday, Strange Fruit

Fragmento XXVI

Roída a corda,
reina o silêncio.
A noite impera,
desolada e pálida,
sobre os escombros da guerra.

Wednesday, December 26, 2007

"Zorba, The Greek", dir. Cacoyannis (1963)

Fragmento III

A taça, cheia e ensombrada, estremece.
O vinho, espalhado pela mesa,
gota a gota, tomba,
no chão alastra a mancha.
Cala, finge que acontece
o que acontecer não pode
senão se os deuses o consentem
e vibrante desfere o golpe.
O tempo dá, o tempo tira,
a mentira ensina a verdade do que há.

Monday, December 24, 2007

Ex-voto a Endovélico

Fragmento XXXV

Gautama! voltou meu coração.
Vejo-o passar, sentada à janela,
às vezes nuvem, outras vezes pássaro ou barco.

Se soubesse onde moravas teria enviado
minha serva com glicínias e magnólias,
pedras do caminho e nós de uma corda
e se aceitasses,uma cornucópia de figos,
amêndoas,nozes, mel e uvas passas.

Friday, December 21, 2007

Eugénio de Andrade

Canção, Eugénio de Andrade

Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?

Dei o cravo e dei o lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não?

Fragmento XXVIII

Namorada ia ela
pela calada da noite
saltando valados
esmagando a erva
os cães ladrando.

Thursday, December 20, 2007

Segreis de D. Dinis

Cantiga de amigo

Ai flores, ai flores do verde pinho
se sabedes novas do meu amigo,
ai deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado,
ai deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquele que mentiu do que pôs comigo,
ai deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquele que mentiu do que me há jurado
ai deus, e u é?

(...)

D. Dinis

Fragmento XXIV

Casa de cristal,
Pátria minha.
Casa mais antiga
das mais antigas conhecidas!

Sou moça e fidalga.
O meu cavalo é árabe.
A minha cintura fina.
Lânguido e cruel
é o ladrão que me encarcera
nesta torre fria.

Wednesday, December 19, 2007

Excerto de "Le Feu Follet"(1963), Louis Malle. Música de Eric Satie.

Fragmento XVII

Dançando o tempo perdido das origens
uma ligeira poalha de ouro
coroou o templo,
enfaixado de linho branco.
Dos que nunca partiram triste é o canto.
Submersos nas almas paradas,sonham,
relembrando o destino, sempre porvir.

Wednesday, December 12, 2007

As sete mulheres do Minho

Fragmento VI

Estava sentada
num campo de margaridas
e um rapaz comigo.
A minha mãe chamou-me.
Eu respondi-lhe:
"Não vou. Eu fico."

Saturday, December 08, 2007

Elvis Presley - Love Me Tender (Live 1968)

Fragmento XX

Tudo começou com o meu primeiro amor. Na igreja da minha primeira comunhão. Nesse dia, terna e ardente, desejei esse deus de paixão e morte. A vida é monstruosa, pensava eu, um rio apodrecido onde flutuam, à deriva, corpos mortos, e orava baixinho: "J'ai besoin du miel de ta bouche, du chaleur de ta peau, du pain de tes mains, du ciel de tes yeux ouverts." Esperava um sinal. Não veio.
Para me curar dessa pancada, cuja mancha perseguiu-me sempre, rigorosa e ao sabor do acaso, construí uma muralha tão alta, longa e poderosa como a muralha da China e no espaço desse zero afectivo recompus-me, lentamente.
Durante esse tempo, possuída de terror e júbilo, senti-me uma vénus pré-histórica, grossa e grávida e, nas minhas noites de insónia, inventei outros deuses, criei heróis, seduzi demónios. Um dia, não sei como descobri, talvez por acidente, numa estrada, algures, no Sul, que o meu mundo não fazia sentido senão desses estreitos limites onde eu vivia escondida. Não me senti feliz ou triste. Se o mundo era um asilo de loucos, uma peça de teatro absurda, representada por actores esquizofrénicos ou paranóicos, uma projecção colectiva de deuses mortos que deambulavam pelo espaço de representação, invadido pelo escuro, tanto fazia. Aliás, gostava mais da minha loucura que da deles, pelo menos, era minha.
Aos outros, não os conhecia, sentados, assistindo, obscuros e ignotos, ao espectáculo. Nas minhas tardes de tédio, protegida pelas ameias do meu castelo de palavras, observava os seus gestos e classificava-os como objectos de marketing ou obras de arte, belas ou imperfeitas, que por um acaso magnífico possuíssem vida. Gostava de vê-los rodopiar no ar como poeira que um vento divino sacudisse e derrubasse no solo, depositasse nos telhados das casas, nas estátuas das praças dos jardins públicos.
Do meu mundo caótico excluí o sofrimento. Foi quando te conheci. E de noite chorei e esta manhã quando aventurei-me e saí, tinha os olhos vendados e caí no passeio. Caminhei pelas ruas da cidade como sonâmbula e trazia nas mãos a flor que me tinhas oferecido.

Thursday, December 06, 2007

Os vampiros, Zeca Afonso

Carta a um camarada

Prezado colega,

Ao longo destes últimos anos, quiçá influenciado pelas contemporâneas metamorfoses epistemológicas que insistem em vender como novo aquilo que é antigo, valha-me Santo Péricles e a Liga de Delos, venho, progressivamente,aproximando-me de posicionamentos diferentes dos que me eram habituais, vencendo as dificuldades inerentes à minha natural modéstia e propensão para a visão paralítica das realidades sociais e humanas, atitude comum naqueles que, como eu, sem princípios, metodológicos, naturalmente, se iniciaram no estudo da "Comédie Humaine".
Há já algumas lustrosas décadas que reúno material para escrever um chorudo estudo sobre a função dos conceitos abrangentes dentro da sociedade ocidental contemporânea. Apercebeu-se com certeza que me refiro concretamente ao Complexo Imperial Ocidental (CIO). Infelizmente, outros afazeres científicos têm-me desviado e impedido de concretizar este antigo anseio. Não me coíbo de expressamente citar a minha tese de doutoramento, magnamente aprovada pela Universidade Africana de Moto Ledo, sobre as causas, consequências, objectivos e meios, não do terramoto que destruiu Lisboa em 1755, por todos sobejamente conhecido, mas sim do maremoto que lhe foi concomitante, evitando, embora, criar situações de paralelismo e convergência. Escrevi sobre o assunto alguns milhares de páginas, tanto quanto possível e sempre que a complexidade do tema assim o exigiu numa linguagem clara e transparente, ressalvando, embora, num ou noutro caso, a natural fragilidade inerente a algumas das palavras. Purga. Cruz. Credo. Canhoto.
Regressando, sem nunca lá ter estado, ao motivo que me levou a escrever-lhe, gostaria que me desse a sua opinião sobre o plano de salvação nacional que gizei para salvar a falida economia portuguesa do caos turbilhonante que a invade e que, seguidamente, passo a expor:
A saber:
Quantos portugueses deveríamos exportar para a lua, no prazo máximo de dez anos e a que ritmo para que Portugal se transforme no maior campo de golf até hoje arquitectado neste planeta, onde os nossos amigos europeus e americanos, classe média superior, a nata da civilização, com quem temos com esforço criado laços, possam vir com prazer despender os seus ecus e dólares? A felicidade dos portugueses, meta para qual trabalho, assim o exige. Somos muitos. Somos demasiados. Estragamos a paisagem.

Seu amigo, sem desfalecimento,
Leonardo Ventura

Tuesday, December 04, 2007

Eros e Psique, Antonio Canova, 1757-1822

Personagem à procura de um autor

Já não consigo dizer tanto faz ou sei lá. Tento escolher. Não sou capaz. Vejo apenas um enorme céu azul muito pálido de papel à minha frente. Havia alguém que morria e cantava alguma coisa. Tento recordar ... "There was a song and I was there...Somewhere I lost myself..." É inútil... Não consigo. Quem era eu? Quem cantava? Nenhum deus iluminará a minha alma? Não. Incendiará a minha escuridão? Não. O meu corpo é cego. Sou pobre. Não tenho alma.

Sunday, December 02, 2007

Fight Tango, Belle Chase Hotel

Framento LX

Hoje acordei cheia de sofreguidão, baba e ranho. Senti-me mal. Sento-me na cama e dou comigo a pensar que alguma coisa não vai bem. Tenho a sensação de que sou visível. Suspeito mesmo que ando a ser seguida. Ergo as persianas. Faz-se luz. Vou ao armário. Não vejo nada. Debaixo da cama ninguém. É estranho. Qualquer dia sou apanhada e então há-de ser bonito! Já não sei onde me esconder. Ando a ser apalpada e não dou por nada. Não! As coisas, sei lá eu o quê, talvez seja eu, eu não estou bem comigo!