Tuesday, January 29, 2008

A Cidade do Antigamente

Lembro-me ainda do tempo em que andava pelas ruas da cidade e acreditava, com muito exagero que, em breve, com um pouco de boa vontade, pratica e educadamente, conheceria toda a gente que havia para conhecer. Frequentava, nessa altura, o liceu feminino e vivia apavorada com as aulas de lavores. Nunca tive muita queda e, paciência? muito menos!, para bordados e malhas. Nunca consegui acabar uma única peça. Em compensação devorava os livros que me caíam nas mãos de fio a pavio. Às vezes escondia-os porque tinha a sensação que aqueles livros não deviam ser exactamente para a minha idade ou condição, mas na verdade ninguém se dava o cuidado de saber o que é que eu lia.
Aos fins de semana eu e as outras raparigas da mesma idade que também andavam a estudar, e ser estudante tinha então o cheiro particular do privilégio social e ser senhor doutor... ó a fineza!, mas continuando, aos fins de semana eu e as colegas, cheias de perliquitetes, enfiadas nos nossos trajos domingueiros, corríamos o "Passeio dos Tristes", instituição celebérrima, rua do Souto abaixo, rua do Souto acima, com uma breve paragem no jardim de Santa Bárbara e o lanche tomado no café Diana, em cuja entrada dardejava fulgurante na sua nudez a deusa da caça.
Pela parte que me tocava tinha horror a essas saídas em que semanalmente me sujeitava à audição de toda a praxe sonora que certa percentagem da população da cidade e refiro-me, naturalmente, aos rapazes julgavam fazer parte indispensável do assédio às saias. E verdade seja dita, as outras raparigas também achavam que sim e as mais atrevidas não poupavam nos comentários. Tínhamos horários rígidos para chegarmos a casa e eu cuidadosamente evitava dizer que tinha ido ao café, considerado nunca percebi porquê, um antro de devassidão para donzelas inocentes, que nada devia perturbar ou desviar do seu dever de castidade, prova inefável de que seríamos as esposas modelo que as nossas famílias em particular e toda a comunidade cristã em geral, fervorosamente e com meios punitivos se fosse caso disso, desejavam que fossemos.
Naquele tempo altura a única coisa que eu realmente queria era ser adulta e fazer tudo o que me desse na real gana. Supunha eu que quando fosse crescidinha beberia rum se me apetecesse e seria imune a qualquer tipo de chantagem e castigos variáveis e óbvios com que frequentemente me ameaçavam. Teria fugido de casa aos treze anos se soubesse de outro lugar onde pudesse viver. Mas não sabia e tinha medo. Por isso continuava a viver na cidade dos olhos colados nas persianas das casas azulejadas e cheirando a bafio como as velhas igrejas que a todas as horas do dia faziam badalar a voz calma e solene dos sinos. Sonhava com mundos diferentes, outras gentes, Eldorados, que pensava talvez existissem algures e se não retirei daí a ilação de que também eu existia, como Descartes, foi porque o corpo serviu-me sempre como prova suficiente para o delito da existência.
Quanto a certezas não as tinha, mas mais tarde percebi que a morte era uma certeza. Seria minha quando eu a quisesse ou mesmo não querendo, se assim aprouvesse à minha negra tecedeira.

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