Wednesday, January 09, 2008

Fragmento XLI

Naquela cave sentiam-se como os budas parisienses que presidiam em absurdos banquetes sem guardanapos e sem convidados de smoking. Pretendiam encontrar a harmonia impossível, o nirvana prometido nas caixas de chocolate, sonhado em noites intermináveis, com velas acesas, espiraladas em azul. A casa, em delírio permanente, baqueava todos os dias. Lá fora, a realidade desfalecia em chamas de raiva e pânico. O mar de sargaços tropeçava nas avenidas, nas ruas, no olhar dos vencidos, abrindo corredores infinitos por onde a lua irrompia.
No andar de cima, no armário envidraçado, os animais postados em fila, estremeciam mudos na sua frialdade de bibelots. Numa madrugada, sem memória, o gato raro de porcelana da Pérsia caiu e partiu-se em mil bocados. A empregada da limpeza quando chegou, de avental branco e dedos rugosos, varreu os cacos e deitou-os no caixote de lixo, sempre limpo e perfumado.
Na manhã seguinte, um elefante de cristal, iridescente como a espuma do mar tocada pelo sol de Novembro, ocupava o lugar do gato e fitava sem ver com o seu olhar cego de objecto opulento, destilando pó e cansaço, a janela entreaberta por onde entrava o vento fresco da manhã, antecipando a solidão nocturna.

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