"Um dia o coração explodiu-me nas mãos como uma bomba"
sexta-feira, maio 30, 2008
Da Educação
Não espereis pois d'uma creança um elevado grau de excellencia moral. Durante os seus primeiros annos todo o homem atravessou as phases de caracter que atravessou a raça barbara de que descende. Assim também as feiçoes d'uma creança - nariz chato, ventas arrebitadas, labios grossos, olhos afastados, ausência de fossa frontal. etc. - são durante algum tempo as do selvagem, assim como seus instinctos são também os do selvagem. D'aqui a tendencia á crueldade, ao roubo, á mentira, tão geral nas creanças: tendencia que sem o concurso da educação se modifica mais ou menos ao mesmo tempo que as feições do rosto.
Herbert Spencer, Da educação Moral, Intellectual e Physica, trad. Carrilho Videira
Herbert Spencer, Da educação Moral, Intellectual e Physica, trad. Carrilho Videira
Fragmento CX
Quot homines (capita) tot sententiae
Naturalmente, todos fazem sempre o melhor possível. Farão? Todos são muito bons. Serão? Certamente que sim. Mas onde está a escala? Quem avalia? Questões como estas complicam a visão serena e plácida dos nossos governantes, ou não haveria necessidade de estabelecer quotas para as classificações. Salvaguardem-se as aparências já que as avaliações variam consoante quem as aplica e, portanto, não são 100% fiáveis. Verdadeiramente o que interessa é o fraccionamento da escala e as percentagens de cada fatia do bolo das remunerações: 10% de excelentes em qualquer situação não me parece lá muito justo nem muito democrático.
Catarina Tao Tao, Deambulações Virtuais
Naturalmente, todos fazem sempre o melhor possível. Farão? Todos são muito bons. Serão? Certamente que sim. Mas onde está a escala? Quem avalia? Questões como estas complicam a visão serena e plácida dos nossos governantes, ou não haveria necessidade de estabelecer quotas para as classificações. Salvaguardem-se as aparências já que as avaliações variam consoante quem as aplica e, portanto, não são 100% fiáveis. Verdadeiramente o que interessa é o fraccionamento da escala e as percentagens de cada fatia do bolo das remunerações: 10% de excelentes em qualquer situação não me parece lá muito justo nem muito democrático.
Catarina Tao Tao, Deambulações Virtuais
quinta-feira, maio 29, 2008
Busca Nocturna
No meu leito, durante as horas nocturnas,
busquei o amado do meu coração:
"Levantar-me-ei e darei voltas pela cidade,
pelas ruas e pelas praças;
buscarei o amado do meu coração".
Procurei-o e não o achei.
Encontraram-me os guardas que rondam a cidade:
"Vistes, acaso, aquele que o meu coração ama?"
Mal os tinha ultrapassado,
quando encontrei o amado do meu coração;
abracei-o e não o deixava,
até introduzi-lo na casa da minha mãe,
no quarto daquela que me deu a luz.
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
pelas gazelas ou pelas corças do campo;
não perturbeis nem acordeis o meu amor
até que ela o queira.
Càntico dos Cânticos
busquei o amado do meu coração:
"Levantar-me-ei e darei voltas pela cidade,
pelas ruas e pelas praças;
buscarei o amado do meu coração".
Procurei-o e não o achei.
Encontraram-me os guardas que rondam a cidade:
"Vistes, acaso, aquele que o meu coração ama?"
Mal os tinha ultrapassado,
quando encontrei o amado do meu coração;
abracei-o e não o deixava,
até introduzi-lo na casa da minha mãe,
no quarto daquela que me deu a luz.
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém,
pelas gazelas ou pelas corças do campo;
não perturbeis nem acordeis o meu amor
até que ela o queira.
Càntico dos Cânticos
Fragmento LXXXVIII
Devagarinho,
abro a porta do quarto,
respiro a tua pele.
Dentro e preso
ao teu vestido branco,
bate arrebatado
meu coração de jaspe.
abro a porta do quarto,
respiro a tua pele.
Dentro e preso
ao teu vestido branco,
bate arrebatado
meu coração de jaspe.
quarta-feira, maio 28, 2008
Álvaro de Campos, Saudação a Walt Whitman (excerto)
Portugal-Infinito, onze de Junho de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!
De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Eu, de monóculo cintado e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio
Sou dos teus, tu bem sabes e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas,Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!
De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Eu, de monóculo cintado e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio
Sou dos teus, tu bem sabes e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas,Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.
Fragmento CI
Se pudesse regressaria à infância do mundo, ao paraíso perdido. Voltaria a ser a tua escrava e tu o meu senhor. Dar-me-ias quase nada: pão, leite, mel e flores. Eu ficaria agradecida porque não há mais vida para além disso. Perdoa a loucura de procurar um sentido, uma salvação, uma via. Não há nada disso e tu sabes e vês aquilo que eu sinto e vejo.
Mas, nunca é a mesma água que corre pelas margens do rio, nunca é a mesma ponte que une as margens. Faço as exéquias aos meus mortos e sigo em frente. A minha casa é uma ausência, a minha vida uma passagem. Sob os meus passos, a estrada surge, negra e brilhante, tapeçaria de alcatrão,marginada pelo mar.
Mas, nunca é a mesma água que corre pelas margens do rio, nunca é a mesma ponte que une as margens. Faço as exéquias aos meus mortos e sigo em frente. A minha casa é uma ausência, a minha vida uma passagem. Sob os meus passos, a estrada surge, negra e brilhante, tapeçaria de alcatrão,marginada pelo mar.
terça-feira, maio 27, 2008
Fragmento XCVII
Gostava de saber como será o nosso próximo encontro. Não vou dizer nada de especial.Mandarei vir uma laranjada e pedirei ao empregado do café que te diga que preciso de um chocolate. Será que mo ofereces?
Talvez não. Talvez regateies. Talvez digas: "Não sei se tenho dinheiro". Ou então algo mais elegante e primaveril: "Sabes, o chocolate faz dor de barriga e além disso estraga a pele que fica cheia de borbolhinhas. Eu vou rir-me imenso e dir-te-ei: "Querido, o que foi que aconteceu? Hoje, acordaste cheio de espírito.
Aliás não vou. Sempre é melhor do que apanhar frio ou um escaldão. Depois quem sabe? Receio muito que os deuses nesse dia preguem alguma partida, façam espirrar pregos e canivetes e eu te dê um murro no estômago e tu vomites muito depressa a verdade:
- Abracadabra, shef tassibilium, cuzcuz metziz, merrassim, altabaliz, etc e tal.
- Tal e qual!
Talvez não. Talvez regateies. Talvez digas: "Não sei se tenho dinheiro". Ou então algo mais elegante e primaveril: "Sabes, o chocolate faz dor de barriga e além disso estraga a pele que fica cheia de borbolhinhas. Eu vou rir-me imenso e dir-te-ei: "Querido, o que foi que aconteceu? Hoje, acordaste cheio de espírito.
Aliás não vou. Sempre é melhor do que apanhar frio ou um escaldão. Depois quem sabe? Receio muito que os deuses nesse dia preguem alguma partida, façam espirrar pregos e canivetes e eu te dê um murro no estômago e tu vomites muito depressa a verdade:
- Abracadabra, shef tassibilium, cuzcuz metziz, merrassim, altabaliz, etc e tal.
- Tal e qual!
segunda-feira, maio 26, 2008
Fragmento XCIII
Entonteces-me menina
com o teu sorriso de gaiata,
pendurado nos meus olhos.
Vem a minha casa.
Dar-te-ei rebuçados de amêndoa,
sal, espigas e tomates tenros.
Azougado sopra o vento,
cais no rego d'água.
Demorado o tempo corre,
azougado o vento passa.
Morto é o momento.
com o teu sorriso de gaiata,
pendurado nos meus olhos.
Vem a minha casa.
Dar-te-ei rebuçados de amêndoa,
sal, espigas e tomates tenros.
Azougado sopra o vento,
cais no rego d'água.
Demorado o tempo corre,
azougado o vento passa.
Morto é o momento.
sábado, maio 24, 2008
Colecta Literária* 9 (Jean Genet)
"Em Chatila, em Sabra, não-judeus massacraram outros não-judeus: o que é que nós temos a ver com isso?" Menahem Begin (na Knesset)
Ninguém, nem nada, nenhuma técnica narrativa poderão descrever o que foram esses seis mesese passados pelos feddayin nas montanhas de Jerash e de Ajlun, na Jordânia, sobretudo as primeiras semanas. Relatar os acontecimentos, estabelecer a cronologia, os êxitos e os erros da OLP, já outros o fizeram. O ar do tempo, a cor do céu, da terra e das árvores tudo isso pode ser descrito sem jamais dar a sentir a ligeira embriaguez, a caminhada acima do pó, o brilho do olhar, a transparência da relação existente não só entre os feddayin, mas entre eles e os chefes. Tudo, todos fremiam sob a copa das árvores, tudo ria e se maravilhava com essa vida tão nova para todos eles, e havia nesse frémito algo de estranhamente fixo, e emboscado, algo de reservado e protegido como alguém que reza sem palavras. Tudo era de todos. E cada um em si estava sozinho. Ou talvez não. Sorridentes esgazeados, em suma. (...)
A palavra "Palestinianos", esteja ela em título ou inserida no corpo de um artigo, ou num panfleto, - evoca-me logo os feddayin num lugar preciso - a Jordânia - e numa época facilmente datável: Outubro, Fevereiro, Março, Abril de 1971. Foi nesse sítio e nessa altura que eu conheci a Revolução palestiniana. A extraordinária evidência do que estava a acontecer, a força dessa alegria de existir tem também o nome de beleza.
Passaram-se dez anos e eu deles nada mais soube, a não ser que estavam no Líbano, os feddayin. A imprensa europeia falava do povo palestiniano com desenvoltura, ou mesmo com desdém. E, de repente, Beirute Ocidental. (...)
Conta-me S., em Beirute Ocidental, após a chegada dos israelitas: "Caíra a noite, deviam ser dezanove horas. De repente, uma grande barulheira de ferros, ferros e mais ferros. Toda a gente, eu, a minha irmã, o meu cunhado, corre à varanda. Noite de breu. De tempos a tempos, uma espécie de relâmpagos, a menos de cem metros. Como sabes, quase à nossa frente há uma espécie de P.C. israelita: quatro tanques, uma casa ocupada por soldados e oficiais, e sentinelas. O escuro. E o barulho da ferragem a aproximar-se. Os relâmpagos: umas tochas acesas. E quarenta ou cinquenta garotos dos seus doze ou treze anos a baterem em cadência nuns pequenos ferros, uns com pedras, outros com martelos ou qualquer outra coisa. Gritavam e ritmavam com força: La illah illah Allah, Lá Kataeb wa yahud. (Só Deus é Deus. Não aos Kataeb, não aos Judeus.)"
Jean Genet, Quatro Horas em Chatila, trad. Luiza Neto Jorge
Ninguém, nem nada, nenhuma técnica narrativa poderão descrever o que foram esses seis mesese passados pelos feddayin nas montanhas de Jerash e de Ajlun, na Jordânia, sobretudo as primeiras semanas. Relatar os acontecimentos, estabelecer a cronologia, os êxitos e os erros da OLP, já outros o fizeram. O ar do tempo, a cor do céu, da terra e das árvores tudo isso pode ser descrito sem jamais dar a sentir a ligeira embriaguez, a caminhada acima do pó, o brilho do olhar, a transparência da relação existente não só entre os feddayin, mas entre eles e os chefes. Tudo, todos fremiam sob a copa das árvores, tudo ria e se maravilhava com essa vida tão nova para todos eles, e havia nesse frémito algo de estranhamente fixo, e emboscado, algo de reservado e protegido como alguém que reza sem palavras. Tudo era de todos. E cada um em si estava sozinho. Ou talvez não. Sorridentes esgazeados, em suma. (...)
A palavra "Palestinianos", esteja ela em título ou inserida no corpo de um artigo, ou num panfleto, - evoca-me logo os feddayin num lugar preciso - a Jordânia - e numa época facilmente datável: Outubro, Fevereiro, Março, Abril de 1971. Foi nesse sítio e nessa altura que eu conheci a Revolução palestiniana. A extraordinária evidência do que estava a acontecer, a força dessa alegria de existir tem também o nome de beleza.
Passaram-se dez anos e eu deles nada mais soube, a não ser que estavam no Líbano, os feddayin. A imprensa europeia falava do povo palestiniano com desenvoltura, ou mesmo com desdém. E, de repente, Beirute Ocidental. (...)
Conta-me S., em Beirute Ocidental, após a chegada dos israelitas: "Caíra a noite, deviam ser dezanove horas. De repente, uma grande barulheira de ferros, ferros e mais ferros. Toda a gente, eu, a minha irmã, o meu cunhado, corre à varanda. Noite de breu. De tempos a tempos, uma espécie de relâmpagos, a menos de cem metros. Como sabes, quase à nossa frente há uma espécie de P.C. israelita: quatro tanques, uma casa ocupada por soldados e oficiais, e sentinelas. O escuro. E o barulho da ferragem a aproximar-se. Os relâmpagos: umas tochas acesas. E quarenta ou cinquenta garotos dos seus doze ou treze anos a baterem em cadência nuns pequenos ferros, uns com pedras, outros com martelos ou qualquer outra coisa. Gritavam e ritmavam com força: La illah illah Allah, Lá Kataeb wa yahud. (Só Deus é Deus. Não aos Kataeb, não aos Judeus.)"
Jean Genet, Quatro Horas em Chatila, trad. Luiza Neto Jorge
Fragmento XC
A defesa dos interesses nacionais justifica tudo: a dedicação dos operários (manuais e intelectuais), o sacrifício e até a vida dos homens, mulheres, velhos e crianças. Actualmente, a nação sobrevive, postumamente, por similitude simbiótica com um ante-pós aprioristicamente constituído. A sociedade pós-industrial ou pós-moderna pode ser plural, mas a nação como a mãe há só uma: a nossa e mais nenhuma. Uns são filhos da puta, outros são bastardos, poucos são os queridinhos da mamã, muitos são à nascença abandonados, alguns são adoptados, a maioria não se rala que não vale mesmo a pena.
Catarina Tao Tao, Deambulações Virtuais
Catarina Tao Tao, Deambulações Virtuais
sexta-feira, maio 23, 2008
Colecta Literária* 8 (Franz Kafka)
Qualquer homem é particular e, em virtude da sua particularidade, chamado a agir, desde que tome gosto na sua particularidade. Na escola como em casa, tanto quanto tive experiência, trabalhava-se para delir a particularidade. Era tornar a educação mais fácil, mais fácil também a vida da criança; é verdade que lhe era necessário saborear em primeiro lugar a dor que provoca a sujeição. Não se fará nunca compreender a um rapaz, à noite, quando está no melhor de uma história cativante, nunca se lhe fará compreender por uma demonstração limitada a ele próprio que é necessário interromper a leitura e ir-se deitar. Diziam-me em semelhante caso que se fazia tarde, que estragava a vista, que o meu despertar na manhã seguinte seria penoso, que essa medíocre e estúpida leitura não valia a pena, o que não podia contradizer expressamente, porque,em suma, nada disso atingia sequer os confins do que merece reflexão. Tudo era infinito, tudo se perdia no indeterminado de tal modo que podíamos identificar este todo com o infinito. O tempo era infinito, não podia portanto fazer-se tarde, o poder da minha vista era infinito, não podia portanto esgotá-lo, a própria noite era infinita, não havia portanto necessidade alguma de me inquietar com o levantar matinal; e quanto aos livros, não os distinguia de acordo com a estupidez ou a inteligência, mas conforme me cativavam ou não, ora este cativava-me. Tudo isso não o podia exprimir assim, mas sucedia que à força de suplicar que me fizessem o favor de me permitir prolongar a leitura, me tornava importuno ou decidia prosseguir a leitura sem consentimento. Tal era a minha particularidade.
Franz Kafka, Antologia de Páginas Íntimas, trad. Alfredo Margarido.
Franz Kafka, Antologia de Páginas Íntimas, trad. Alfredo Margarido.
Fragmento II
É verdade ou é mentira?
Sabes alguma coisa que eu não sei?
Sabes alguma coisa que eu deva saber?
Eu faço de conta que não sei de nada
mas há algo que não consigo perceber.
Fazem um esforço louco para eu ser
quem eles querem que eu seja
mas eu não sei quem sou ou quero ser.
Balali, Presídio Infantil, s/d.
Sabes alguma coisa que eu não sei?
Sabes alguma coisa que eu deva saber?
Eu faço de conta que não sei de nada
mas há algo que não consigo perceber.
Fazem um esforço louco para eu ser
quem eles querem que eu seja
mas eu não sei quem sou ou quero ser.
Balali, Presídio Infantil, s/d.
quarta-feira, maio 21, 2008
Fragmento LXXXVII
No meu jardim nascem rosas
que desdenham das fúrias do mar.
São calmas, são pacíficas,
são caladas.
Crescem com o beijo do vento,
desfalecem à noite, ao luar.
que desdenham das fúrias do mar.
São calmas, são pacíficas,
são caladas.
Crescem com o beijo do vento,
desfalecem à noite, ao luar.
terça-feira, maio 20, 2008
segunda-feira, maio 19, 2008
Fragmento XXXII
Fui, outrora, a rainha bem amada
de um oculto império desaparecido na noite.
Nas minhas mãos as serpentes faziam-se aves
e os animais selvagens aquietavam-se
como cordeiros de pêlo macio.
Usurparam o meu trono,
condenaram-me ao exílio.
Dentro dos meus cornos de princesa parida
em noite de tempestade,
sopra o vento frio do Norte,
gelada e estéril mantém-se a terra.
O sabor da erva ou a aragem fresca da Primavera
não chegam até mim.
Sê benévolo, estrangeiro. Não te exasperes.
Não sou, nunca fui senão uma árvore louca.
de um oculto império desaparecido na noite.
Nas minhas mãos as serpentes faziam-se aves
e os animais selvagens aquietavam-se
como cordeiros de pêlo macio.
Usurparam o meu trono,
condenaram-me ao exílio.
Dentro dos meus cornos de princesa parida
em noite de tempestade,
sopra o vento frio do Norte,
gelada e estéril mantém-se a terra.
O sabor da erva ou a aragem fresca da Primavera
não chegam até mim.
Sê benévolo, estrangeiro. Não te exasperes.
Não sou, nunca fui senão uma árvore louca.
sábado, maio 17, 2008
Fragmento XXIX
Quando eu era menina nada me despertava tanto a curiosidade como os longos e sombrios corredores do prédio de vários andares onde eu habitava. Vezes sem conta subia os vários lances de escadas (não havia elevador) para vagarosamente percorrê-los, parando alguns segundos em cada porta, na esperança de ouvir algum ruído que denotasse presença ou que alguém, inesperadamente, abrisse a porta.
Esses corredores obscuros desafiavam a minha imaginação como um enigma que por força, um dia, eu teria que desvendar.
Nada era para mim tão misterioso como essas portas obstinadamente fechadas. Nem mesmo o olímpico céu onde Deus reinava, sentado num trono, entre as nuvens, rodeado pela família de anjos e santos era para mim tão irreal. Nem mesmo o inferno, eternamente em chamas onde eram lançados os condenados em tribunal inquisitório era tão absurdo. Antes pelo contrário, inscreviam-se na ordem lógica do meu mundo, eram o argumento irrefutável de que a Lei existia e era para ser cumprida, o que eu fazia com amor e temeroso abandono e por vezes alguma revolta.
Mas os corredores vazios,as portas cerradas fascinavam-me como um mundo outro, um mundo radicalmente desconhecido.
Um dia mais tarde, eu sabia, eu tocaria à campainha e uma mulher vestida de negro, sem rosto e sem idade, abriria a porta.
- Tão tarde, minha querida! Por onde andaste? Há muito que estava à tua espera.
Justamente as palavras que eu mais temia. Que lhe responderia? Que faria? Não sabia.
E como uma esposa de Barba Ruiva, precocemente prudente e sábia, evitava bater à porta, denunciar-me por algum modo.
Do outro lado, invisível reinava a Morte e eu não queria morrer ali. Aliás, não queria morrer fosse onde fosse e ocultava-me na sombra, invisível para todos e como todos também invisível para mim.
Narciza Felizarda, Crónicas de Antanho.
Esses corredores obscuros desafiavam a minha imaginação como um enigma que por força, um dia, eu teria que desvendar.
Nada era para mim tão misterioso como essas portas obstinadamente fechadas. Nem mesmo o olímpico céu onde Deus reinava, sentado num trono, entre as nuvens, rodeado pela família de anjos e santos era para mim tão irreal. Nem mesmo o inferno, eternamente em chamas onde eram lançados os condenados em tribunal inquisitório era tão absurdo. Antes pelo contrário, inscreviam-se na ordem lógica do meu mundo, eram o argumento irrefutável de que a Lei existia e era para ser cumprida, o que eu fazia com amor e temeroso abandono e por vezes alguma revolta.
Mas os corredores vazios,as portas cerradas fascinavam-me como um mundo outro, um mundo radicalmente desconhecido.
Um dia mais tarde, eu sabia, eu tocaria à campainha e uma mulher vestida de negro, sem rosto e sem idade, abriria a porta.
- Tão tarde, minha querida! Por onde andaste? Há muito que estava à tua espera.
Justamente as palavras que eu mais temia. Que lhe responderia? Que faria? Não sabia.
E como uma esposa de Barba Ruiva, precocemente prudente e sábia, evitava bater à porta, denunciar-me por algum modo.
Do outro lado, invisível reinava a Morte e eu não queria morrer ali. Aliás, não queria morrer fosse onde fosse e ocultava-me na sombra, invisível para todos e como todos também invisível para mim.
Narciza Felizarda, Crónicas de Antanho.
sexta-feira, maio 16, 2008
Colecta Literária* 7 (Bernardo Soares)
Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já não o tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã, senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua mas não o texto.
Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular - jardim público ao quase crepúsculo - sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores pelo céu velho onde as estrelas recomeçam.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego, 13-6-1930
Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular - jardim público ao quase crepúsculo - sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores pelo céu velho onde as estrelas recomeçam.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego, 13-6-1930
Fragmento XVI
Sabes, não sabes?
Da chave que não existia,
dos vidros partidos,
do cofre saqueado,
do amor abandonado,
das cicatrizes,
do encontro, do desencontro,
da partida sem caminho de regresso.
Através da chuva, através do vento,
através da noite, através do tempo,
a vida e a morte caminham unidas
e em cada passo,
as vigas esboroam-se,
o tecto vacila,
a casa tomba.
Da chave que não existia,
dos vidros partidos,
do cofre saqueado,
do amor abandonado,
das cicatrizes,
do encontro, do desencontro,
da partida sem caminho de regresso.
Através da chuva, através do vento,
através da noite, através do tempo,
a vida e a morte caminham unidas
e em cada passo,
as vigas esboroam-se,
o tecto vacila,
a casa tomba.
quarta-feira, maio 14, 2008
Pede o RAA que me defina em seis palavras e uma imagem. Vou tentar:

Van Gogh, Campo de Girassóis
Sou preguiçosa por convicção política, desorganizada por sistema, curiosa por emotividade, leitora compulsiva, remediada crónica sem cura, apaixonada pela vida.
Não sei se gosto de mim, às vezes sim, outras vezes não.

Van Gogh, Campo de Girassóis
Sou preguiçosa por convicção política, desorganizada por sistema, curiosa por emotividade, leitora compulsiva, remediada crónica sem cura, apaixonada pela vida.
Não sei se gosto de mim, às vezes sim, outras vezes não.
terça-feira, maio 13, 2008
O Sonho de Uma Sombra
A sorte dos mortais
cresce num só momento;
e um só momento basta
para a lançar por terra,
quando o cruel destino
a venha sacudir.
Efêmeros! que somos?
que não somos? O homem
é o sonho de uma sombra.
Mas quando os deuses lançam
sôbre êle a sua luz,
claro esplendor o envolve
e doce é então a vida.
Píndaro, Trad. Péricles Eugénio da Silva Ramos
cresce num só momento;
e um só momento basta
para a lançar por terra,
quando o cruel destino
a venha sacudir.
Efêmeros! que somos?
que não somos? O homem
é o sonho de uma sombra.
Mas quando os deuses lançam
sôbre êle a sua luz,
claro esplendor o envolve
e doce é então a vida.
Píndaro, Trad. Péricles Eugénio da Silva Ramos
domingo, maio 11, 2008
Fragmento XVIII
Morreu Maria Severa,
aventureira e boémia.
Que tragédia!
Mulher de vida vadia,
entretinha as más línguas,
beberricava aguardente,
mascava tabaco,
fazia teatro e cantava o fado.
Vendia sonhos ao desbarato.
A sua voz enrouquecida,
soava triste e dolente,
entre violas e guitarras
nos becos e vielas de Lisboa,
rumo ao cais e às trevas,
ao incógnito rio negro,
arabesco de nankin e noite
entre o céu e o fim,
o abismo e o recomeço.
aventureira e boémia.
Que tragédia!
Mulher de vida vadia,
entretinha as más línguas,
beberricava aguardente,
mascava tabaco,
fazia teatro e cantava o fado.
Vendia sonhos ao desbarato.
A sua voz enrouquecida,
soava triste e dolente,
entre violas e guitarras
nos becos e vielas de Lisboa,
rumo ao cais e às trevas,
ao incógnito rio negro,
arabesco de nankin e noite
entre o céu e o fim,
o abismo e o recomeço.
quarta-feira, maio 07, 2008
Fragmento XLXX
Todos os dias eu regresso,
parto e divido-me,
entre um dragão de boca cheia
e uma lady de olhos tristes.
Ela vem sorridente, ´
vestida de azul e estrelas.
Ele bate com os pés
e solta gritos estridentes.
Eu sou a criança perdida
entre dois mundos.
Entre sonhos e vigílias esperando,
a aparição divina e surpreendente,
o coração aberto, a lâmina afiada,
rei ou mendigo,
salpicado de lama
ou coberto de honrarias,
um pai, um irmão, um filho,
um louco, um bastardo, um pária,
mestre de solfejo, cambista ou ourives,
que me diga por que estou triste
e me ensine a ser feliz.
parto e divido-me,
entre um dragão de boca cheia
e uma lady de olhos tristes.
Ela vem sorridente, ´
vestida de azul e estrelas.
Ele bate com os pés
e solta gritos estridentes.
Eu sou a criança perdida
entre dois mundos.
Entre sonhos e vigílias esperando,
a aparição divina e surpreendente,
o coração aberto, a lâmina afiada,
rei ou mendigo,
salpicado de lama
ou coberto de honrarias,
um pai, um irmão, um filho,
um louco, um bastardo, um pária,
mestre de solfejo, cambista ou ourives,
que me diga por que estou triste
e me ensine a ser feliz.
sábado, maio 03, 2008
A Boa Nova (excertos), Teixeira de Pascoaes
Já partira, contente, o bom pastor,
Levando a boa nova aos companheiros.
Ia através de vales e de montes,
E de escabrosos, íngremes, outeiros.
(...)
"Sede os primeiros
A ouvir a boa nova, meus amigos!
(...)
Vereis, maravilhados, dentro em pouco,
Surgir, ébria de luz e de mistério,
Nova estrela do novo nascimento.
E, então, os vossos olhos encantados
Hão-de ver, hão-de ver a nova estrela!
As águas hão de vê-la e os arvoredos,
Os rebanhos e os lobos hão-de vê-la!
É ela que vem ao mundo anunciar
O novo Deus menino, o redentor
De quem andou, perdido, no alto mar!
E, de cansado, quase morto, dorme
Sobre a praia, onde as ondas o arrastaram;
E donde, em outra idade, as mesmas ondas
Em seus líquidos braços o levaram,
Através de borrascas e relâmpagos!
"Dorme, dorme cansado... Em torno dele,
Paira faminto corvo carniceiro...
Beija-lhes os pés a espuma... E ao longe, ao longe,
Nasce a eterna manhã de nevoeiro...
Teixeira de Pascoaes, Marânus.
Levando a boa nova aos companheiros.
Ia através de vales e de montes,
E de escabrosos, íngremes, outeiros.
(...)
"Sede os primeiros
A ouvir a boa nova, meus amigos!
(...)
Vereis, maravilhados, dentro em pouco,
Surgir, ébria de luz e de mistério,
Nova estrela do novo nascimento.
E, então, os vossos olhos encantados
Hão-de ver, hão-de ver a nova estrela!
As águas hão de vê-la e os arvoredos,
Os rebanhos e os lobos hão-de vê-la!
É ela que vem ao mundo anunciar
O novo Deus menino, o redentor
De quem andou, perdido, no alto mar!
E, de cansado, quase morto, dorme
Sobre a praia, onde as ondas o arrastaram;
E donde, em outra idade, as mesmas ondas
Em seus líquidos braços o levaram,
Através de borrascas e relâmpagos!
"Dorme, dorme cansado... Em torno dele,
Paira faminto corvo carniceiro...
Beija-lhes os pés a espuma... E ao longe, ao longe,
Nasce a eterna manhã de nevoeiro...
Teixeira de Pascoaes, Marânus.
Fragmento LXXIX
Admiro os poetas de têmpera rija e versos tenros como Teixeira de Pascoaes. Mas, não pertenço à estirpe dos profetas, daqueles que mantêm aceso o altar da pátria. Antes confesso sou da raça dos malditos, dos anti-heróis, dos espectadores do destino. Assistente assíduo no Coliseu, no Circo, no Teatro, canibal, misturado com a multidão ofegante, cheirando a suor, farejando o sangue, observo, embevecido ou estarrecido e às vezes impassível, a oficina da carne, o combate emperdenido e fatal entre deus e a besta humana. No circo, o animal ainda vivo não é senão metáfora do espírito, oferta e sacrifício no ofício divino, que o poeta canta e celebra com palavras efémeras de sangue e cimento, promessas por cumprir de eternidade.
Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias.
Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias.
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