Saturday, May 17, 2008

Fragmento XXIX

Quando eu era menina nada me despertava tanto a curiosidade como os longos e sombrios corredores do prédio de vários andares onde eu habitava. Vezes sem conta subia os vários lances de escadas (não havia elevador) para vagarosamente percorrê-los, parando alguns segundos em cada porta, na esperança de ouvir algum ruído que denotasse presença ou que alguém, inesperadamente, abrisse a porta.
Esses corredores obscuros desafiavam a minha imaginação como um enigma que por força, um dia, eu teria que desvendar.
Nada era para mim tão misterioso como essas portas obstinadamente fechadas. Nem mesmo o olímpico céu onde Deus reinava, sentado num trono, entre as nuvens, rodeado pela família de anjos e santos era para mim tão irreal. Nem mesmo o inferno, eternamente em chamas onde eram lançados os condenados em tribunal inquisitório era tão absurdo. Antes pelo contrário, inscreviam-se na ordem lógica do meu mundo, eram o argumento irrefutável de que a Lei existia e era para ser cumprida, o que eu fazia com amor e temeroso abandono e por vezes alguma revolta.
Mas os corredores vazios,as portas cerradas fascinavam-me como um mundo outro, um mundo radicalmente desconhecido.
Um dia mais tarde, eu sabia, eu tocaria à campainha e uma mulher vestida de negro, sem rosto e sem idade, abriria a porta.
- Tão tarde, minha querida! Por onde andaste? Há muito que estava à tua espera.
Justamente as palavras que eu mais temia. Que lhe responderia? Que faria? Não sabia.
E como uma esposa de Barba Ruiva, precocemente prudente e sábia, evitava bater à porta, denunciar-me por algum modo.
Do outro lado, invisível reinava a Morte e eu não queria morrer ali. Aliás, não queria morrer fosse onde fosse e ocultava-me na sombra, invisível para todos e como todos também invisível para mim.
Narciza Felizarda, Crónicas de Antanho.

2 comments:

fugidia said...

Querida estrelícia,
muito bonito fragmento :-9

Quero agradecer-lhe as bonitas palavras que me deixou no recantinho e dizer-lhe que, sem autorização, as colocquei como adenda no post do concurso.
Espero que me perdoe :-)
Um beijinho.

estrelicia esse said...

Amiga, é um prazer vê-la por cá. Sinto-me feliz por se ter lembrado de mim no seu post. Um beijo.