Tuesday, April 29, 2008

Foyse gastamdo a esperança, cantiga portuguesa, séc. XVI

S. Francisco Xavier, arte namban

Colecta Literária * 6 (Fernão Mendes Pinto)

E tomãdo por principio desta minha peregrinação o q passey neste Reyno, digo q despois que passei a vida atê idade de dez ou doze annnos na miseria & estreiteza da pobre casa de meu pay na villa de Montemór o velho hum tio meu, parece que desejoso de me encaminhar para milhor fortuna, me trouxe a cidade de Lisboa, & me pos no serviço de hûa senhora de geração assaz nobre, & de parentes assaz illustres, parecedolhe que pella valia assi della como delles poderia aver effeito o q elle pretendia para mim. E isto era no tempo em q na mesma cidade de Lisboa se quebrarão os escudos pella morte del Rey dom Manoel da gloriosa memória, que foy em dia de santa Luzia treze dias do mes de Dezebro do anno de 1521. de q eu sou be lebrado, & doutra coisa mais antigua deste reyno me não lebro.
Peregrinaçam, ed. conforme a de 1614, Portucalense Editora.

Monday, April 28, 2008

Poema Zen, Ikkyu

Os convidados partiram,
a música parou,
não há sons;
Não se pode dizer
quando acordará ela
do profundo sono.
Enquanto olho,
uma borboleta volteia.
Escuta, o sino bate
a meia-noite ao meio-dia.

Fragmento LXXXVIII

Quanto te vejo
sinto fluir nas veias
a respiração das algas,
aquieto-me,
perco a memória,
não consigo soletrar os s.
Uma grande estupidez invade
por dentro os meus sentidos
e mente.
Confundo tudo.
Acredito até que te conheço desde sempre.
Verdadeiramente estranho.
Onde foi que nos encontrámos?

Sakamoto Ryuichi, Merry Christmas Mr. Lawrence (Live)

Colecta Literária* 5 (Shusaku Endo)

"Estou pronto para morrer se é esse o Vosso desejo", pensou o missionário, erguendo orgulhosamente a cabeça como um falcão,"mas Vós sabeis como precisa de mim a Igreja no Japão. Sim. Assim como os governantes desta nação precisam dos meus serviços, também o Senhor precisa de mim". Um sorriso triunfante abriu-se-lhe no rosto. O missionário confiava nas suas próprias capacidades. Como provincial de Edo da Ordem Franciscana, considerava sempre que o insucesso do trabalho dos missionários no Japão resultava dos graves erros cometidos pela Companhia de Jesus, que permanentemente se opunham aos Franciscanos. Apesar de os Jesuítas se empenharem vigorosamente como políticos nos assuntos mais triviais, na realidade não entendiam nada de política. Após seis anos de evangelização, tinham construído igrejas em Nagasáqui com autoridade administrativa e canónica autónoma, semeando as sementes da desconfiança no espírito das autoridades japonesas.
"Fosse eu bispo, não teria cometido tamanha estupidez. Tivesse eu sido bispo do Japão..."
Samurai, trad. José-Pedro Gonçalves.

Friday, April 25, 2008

Michio Miyagi, "Haru no umi"

Nagisa Oshima, "The Man Who Left His Will on Film" (1970) [Trailer],

Colecta Literária* 4 (Yukio Mishima)

Todas essas coisas, claro, tinham sido pressentidas, e eu sabia também que as condições básicas para esta existência imperativa eram o "absoluto" e o "trágico". A morte começou quando me determinei atingir uma existência além daquela que as palavras proporcionavam. Por mais destrutivo que fosse o aspecto assumido pelas palavras, elas estavam profundamente enraizadas no meu instinto de sobrevivência, parte da minha própria vida. Quando foi a primeira vez, realmente, que senti o desejo de usar palavras, a não ser quando senti, deveras, o desejo de viver? Eram as palavras que me permitiriam continuar vivendo, até que eu morresse de morte natural; elas eram os germes vagarosos de "uma doença que leva à morte".
Sol e Aço, trad. Paulo Leminski

Wednesday, April 23, 2008

Pinturas de Hokusai e Música Edo

Provérbios e Outros Ditos

Há um provérbio japonês, de inspiração budística, que diz assim:

Au wa wakaré no hajimé.
(...)
O encontro é o começo da separação.
Wenceslau de Moraes, Ó - Yoné e Ho - Karu

Friday, April 18, 2008

Ode, Ricardo Reis, 1916

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

Notícia de Última Hora

A grande imperatriz do fado, Luzia Desdemonia Tzíngara, regressou hoje,13 de Junho, ao rincão natal.
A cantora, à chegada ao aeroporto da Portela, confessa à imprensa que durante o seu prolongado exílio no Japão sonhava, ininterruptamente, com o seu regresso à terra pátria, ocidente do ocidente.
Trajando um simples fato de burel, cinzelado com grande arte, Luzia declarou em confidência descarada aos jornalistas: "A minha alma está enterrada nesta cidade. Venho em peregrinação ao túmulo do meu pai. Encontrei todas as portas fechadas." Indagada sobre a sua participação no show de variedades: O Arrependimento da Filha Pródiga, previsto pela organização de Festas da Cidade, a artista diz não ter ainda chegado a nenhum acordo com os promotores do evento.
S.E.C., além de doutor em matemática, um dos mais potentes comentadores da actualidade, refere-se à voz da cantora como uma das mais puras expressões da elegibilidade da alma portuguesa - "archeologia do substractum ancestral" - eis como ele define em análise aturada, a letra e o espírito que soberanejam à cabeça do grande corpo de música desse animal falante que é língua portuguesa, poesia que a cantora mastiga em grandes sorvos. "Vivamente impressionado" - diz o crítico - "pela poderosa eloquência da grande fadista, mal solfejo as notas avulsas de um hino de gratidão (que o coração cala, mas a boca articula): belíssimo! super! indizível! É este o canto que avassala o homem. É o coração, grande motor, triunfando da inteligência, impávida meretriz."
"Que diabo diz ele?" perguntamo-nos todos. "Não se percebe tostão!".
Em confissão pungente prossegue a cantora: "Imaginai quão doloroso seria um definitivo adeus à pátria, onde acoimaram-me de maluca e pedinte! Eu não deixaria este país, em particular, Lisboa, onde para sempre perdi as doces e efémeras ilusões da minha juventude, agora fanada, sem estas últimas gotas baptismais com que vos salpico a mioleira."
"Que balde de água fria!": comentamos todos, entreolhando-nos.
"Porém, Deus é testemunha",continuou a artista, "eu corria atrás do meu destino. Hoje, liberta da tirania do destino, plenamente identificada com o meu destino, afirmo com a coragem que dá a lucidez sacrossanta dos vencidos: não sinto alegria em vos deixar! Não fertilizarei o solo de estranhas praias com os miosótis da amizade com que fui aqui, por alguns, festejada. A vós, queridas que tendes o coração mais doce que melaço! A vós, doutores, que vos refastelais em poltronas milenárias...rendo hoje o preito da minha mais sincera homenagem!".
Nós e a República Portuguesa, Cadernos de Divulgação Cultural,Ed. Caixa de Pandora, s.d.

Sunday, April 13, 2008

Ai Mouraria , Amália no Coliseu dos Recreios 1982

Mapa de Portugale


http://porto.taf.net

Framento LXIII

O mundo esquadriado das fronteiras políticas muda todos os dias. Democraticamente, felicito o nascimento regular de novas nações. Hoje, o Kosovo, amanhã o País Basco, depois de amanhã, a Madeira. E espero ainda ver um dia renascer a minha pátria de antanho - Portugale. Como soberanamente afirma um dos meus sobrinhos: "O Porto é uma nação! Só não vê quem não quer."
Biba o Porto camiliano das raízes e das tripas! Biba Portugale! Biba o Jardim da Madeira! (Olhó Tesão!)Biba! Biba! Biba!
Quanto a essa francesinha pretenciosa, desenxabida e sem picante no molho, a capital do outrora luso império, a bela, a opulenta, a cidade de Lisboa, dela me despeço com um fadinho:
Lisboa, bela e severa,
Lisboa, tirana linda,
Lisboa tens mais encantos na hora da despedida!

Catarina Tao Tao, Deambulações Virtuais

Saturday, April 12, 2008

Philip Glass Ensemble, "Train/Spaceship"

Fragmento LXXIV

Papai, eu quero de presente uma barquita
com dois pássaros e um mastro verde.
Dá-me as mãos, os pés e beijos, nós de corda,
para que eu possa destruir o medo
que me corta a respiração e o sono
e me impede os gestos de ternura e espanto:
eu vivo e tu existes!
Só para te dizer que te amo,
passados todos estes anos.
Descobri-o, ontem, vasculhando o sótão
e encontrando elos perdidos:
as sandálias brancas que me ofereceste
no dia da expedição ao aeroporto.
As naves de aço que partiam
lançavam no céu moroso e belo,
o sol vibrante, manchas de fumo azul,
cavalos de sonho, fugidios e velozes,
galopando no espaço urbano.

Thursday, April 10, 2008

Nuvem Passageira versão 2

Fragmento XLX

Foi assim a minha passagem
pela tua vida de marinheiro,
prisioneiro do mar, fugitivo da terra:
fugaz e ligeira,
carícia breve, ténue cilício,
um aroma leve e delicado
que se esvaiu no céu azul.

Wednesday, April 09, 2008

Marília Vargas canta Villa Lobos - Bachianas nº5

Primavera (1458), Botticelli

Colecta Literária* 3 (Leão Tolstoi)

No mês de Junho, ao voltar para casa, atravessou de novo a floresta das bétulas. Os guizos dos cavalos ouviam-se aí mais surdamente do que seis semanas antes. Tudo estava espesso, copado, sombrio. (...)
O dia estava quente, havia tempestade no ar; uma pequena nuvem negra regou o pó do caminho e a erva do fosso: o lado esquerdo do bosque continuava na sombra, o lado direito, apenas agitado pelo vento, cintilava todo molhado ao sol: tudo florescia e, de perto e de longe, os rouxinóis gorgeavam.
"Parece-me que havia aqui um carvalho que me compreendia", disse consigo o príncipe André, olhando para a esquerda e atraído contra vontade pela beleza da árvore que procurava. O velho carvalho transformado estendia-se numa cúpula de verdura carregada, luxuriante, desabrochada, que se baloiçava, sob o sopro de uma ligeira brisa, aos raios do sol poente. Não se viam já ramos recurvados, nem contusões: não havia já na sua aparência nem amarga desconfiança, nem sombrio pesar, nada mais do que as folhas novas cheias de seiva que haviam furado uma casca secular, e perguntávamo-nos com surpresa se fora aquele patriarca que lhes dera a vida!
"Sim , é ele!" exlamou o príncipe André, e sentiu o coração inundado de alegria intensa que lhe traziam a Primavera e aquela vida nova. As recordações mais íntimas, as mais queridas da sua existência, deslizaram diante de si. (...)
Muitas vezes, passeava no gabinete, com as mãos cruzadas atrás das costas, sorrindo às suas visões confusas e desconexas, a Pedro, à jovem da janela, ao carvalho, à glória, à beleza da mulher, ao amor que faltara à sua vida!
Guerra e Paz, Ed. Minerva

Fragmento LXXVIII

Eis-me chegado ao cume da montanha. Diante de mim estende-se o mundo como uma paisagem entreaberta para o futuro. Amanhece, o orvalho rebrilha, iluminado pelo sol que se ergue no horizonte. Inesperadamente, surge uma rapariga. Vem vestida de verde e traz uma grinalda de flores entre os cabelos. Repentinamente, ela chega. Bruscamente, eu parto.
Mais vale o conforto de uma velhice sossegada do que os sobressaltos e os arroubos de uma amante jovem e caprichosa.

Leonardo Ventura, Confissões Involuntárias

Tuesday, April 08, 2008

O Sonho de Constantino, Piero della Francesa (1416-1492)



In Hoc Signo Vinces
Não basta sonhar é preciso interpretar os nossos sonhos, tarefa complicada e sujeita a múltiplos enganos. Constantino sonhou que ganhava a batalha da Ponte Mílvio. O imperador venceu, de facto, a peleja, mas o império soçobrou. Ironia do destino, certamente. A Igreja herdou e assumiu a águia e as garras do império romano e o papa, pastoreia, com astúcia e manha, o seu rebanho. Avé César!

Colecta Literária*2 (António Sérgio)

O aceitarmos (mais: o desejarmos, até) que colaborem connosco na remodelação económica indivíduos animados de sentimento religioso (de verdadeiro sentimento religioso, acompanhado, ou não de religião positiva) não contradiz em nós a rejeição completa, para uso próprio, da parte dogmática e ritual de todas as religiões positivas que possa haver; nem a nossa profundíssima antipatia pelos aspectos políticos anticristãos que se topam na história da Igreja Católica e nas almas da maioria dos católicos; nem, ainda, a nossa intensíssima repulsa à intromissão do clero na política. É a esta intromissão que nós damos o nome de clericalismo; e o nosso anticlericalismo (que temos motivos para crer maior que o dos outros anticlericais de Portugal) não degenera em ódio à religião, nem se confunde com o ódio à religião. Na história da Igreja, abominamos tudo o que contraria o preceito de separar o que é de Deus do que é de César.
"Anotações",Introdução Geográfico-Sociológica à HIstória de Portugal.

Sunday, April 06, 2008

Albinoni: Adagio in G Minor

Fragmento XXXIX

Homens, caminhos e rios
estranhos vão se tornando,
à medida que o tempo avança,
procurando pela foz,
a aquietação imensa,
o universo eterno e sem retorno.

Thursday, April 03, 2008

António Sérgio, 1883-1969

Colecta Literária * 1 (António Sérgio)

Medo de quê? Medo de quem? Medo? De muitas pessoas e de muitas coisas: mas medo, principalmente, do tão lugúbre fantasma agitador de insónias que nos traz mais angústias do que a própria morte: a perseguição económica. A ameaça da fome para a mulher e os filhos. Pavor dessa Fúria que se chama mendiguez e penúria, e que impeliu de abalada os tais portugueses de outrora (de que Vossa Excelência nos fala), os quais foram estrelando toda a superfície do Oceano com as esteiras espumantes das nossas quilhas, tornando esta Grei uma grande constelação de colónias, "pelo Mundo em pedaços repartida"... Medo de quê? Medo de quem?... Ah, Senhor Ministro: não me sobra o espaço para lho explicar por miúdos. E porque também tenho medo de ir prejudicar muita gente se tivesse a ousadia de concretizar o assunto, de traçar uma lista de alguns casos típicos (a palavra «lista», em Portugal, causa medo)eu tenho de limitar-me a requerer-lhe um inquérito, acompanhado da promessa de que não será perseguido quem quer que se apresente a testemunhar no assunto.

António Sérgio, "Resposta a um apelo e a uma pergunta de sua excelência o Ministro do Interior", República, 3-11-1953.

Fragmento XXXIV

Os Portugueses têm medo?
Pois, D. Sebastião dizia que não tinha. Contra tudo e todos foi para o Norte de Àfrica e se ainda não anda em peregrinação pelo mundo por lá ficou. Os portugueses é que nunca mais lhe puseram a vista em cima. Pelo menos com vida, diz-se.
Conta-se também que D. Sebastião perguntou uma vez ao duque de Alba se sabia de que cor era o medo. Respondeu-lhe o velho general da outra banda da Ibéria que o medo tinha a cor da prudência.
D. Sebastião não lhe deu importância. Era jovem,impetuoso e cheio de bazófia e medo partiu. O resto da narrativa todos conhecem.
Moral da história: quando temos medo devemos ser prudentes e não fugir para a frente como fez D. Sebastião.

Joana Papa-Léguas, Historietas de encantar e outras fábulas

Wednesday, April 02, 2008

Absurda - David Lynch

Fragmento XVIII

Era até uma rapariga conversadora se lhe dessem trela. Qualquer pretexto servia-lhe de tema quer se tratasse de um acordo político entre nações, o engate do vizinho ou a consumição por causa da mãe sempre doente. As suas palavras nunca deixavam rasto como se se esgotassem no próprio acto de dizê-las.
Jamais agia gratuitamente. Tinha sempre diante de si, omnipresente, aquilo que os hindus designam por karma, ou seja o tropel inelutável das consequências que um simples gesto ou pensamento pode desencadear, o que em termos científicos vulgarmente se designa por efeito borboleta: um insecto que abre as asas em Nova Iorque desencadeará por concatenação de causas e efeitos um tsunami na China.
Na infância vivera numa redoma fechada e vedada à vida e a representação que construíra de si própria era irreal como uma imagem reflectida em águas paradas. Postava-se diante do espelho envolvida em lençóis brancos e sonhava…
Era sujeita a frequentes dores de cabeça cuja origem não discernia e suspeitava vagamente dos seus sentimentos que contrariava por educação.Tinha lampejos de verdadeira crueldade e não se sabia maldosa. Agia por impulsos, sacudidamente, sem pensar. O pensar, um pensar autónomo que exigisse algum esforço de concentração era completamente adverso ao seu carácter manso e cordato à superfície. Era tímida, o que contrariava a sua ânsia infantil de desmedido e grandeza.
Aos quinze anos, desejou ter uma alma elevada, à medida das suas ambições e passou a controlar e contrariar os seus apetites toscos. Assimilara as suas normas de comportamento nas obras dos românticos, Walter Scott ou qualquer outro inglês oitocentista, romances que lhe agradavam tanto como as aventuras de Júlio Verne ou os relatos fantásticos de Jonathan Swift. Tais escapadelas ao mundo da ficção, somados aos seus infindáveis devaneios foram-lhe fatais, ou para utilizar um dos instrumentos da parafernália romântica, funestos. A fatalidade, aliás, estava-lhe no sangue. Não era a vida fatal para todos?
Durante algum tempo, entreteve-se escrevendo um diário, mas depressa desistiu da empresa. Ocorria-lhe apenas relatar coisas banais, a maneira como as amigas se vestiam, o olhar um pouco mais demorado que algum rapaz lhe dedicara, coisas de menina, nada das emoções sobressaltadas que a sua imaginação lhe sugeria. Não fazia a mínima ideia do que queria e a vida quotidiana aborrecia-a.
Tinha a tez pálida dos citadinos, cabelos negros e lisos, era magra e um aspecto simultaneamente tosco e atraente como uma obra incompleta que pedisse mãos de artista. Vestia-se mal e despreocupadamente. Às vezes tinha veleidades de menina caprichosa e gostava de aparecer com velhos chapéus e colares comprados na feira da Ladra, lembranças perdidas de tias que nunca tivera. Sentia em si vagamente um grande talento de actriz e, inconscientemente, reproduzia sem cálculo, aquilo que a imaginação ávida fixara e que depois esquecia. Esse enorme vácuo que parecia ser o cerne da sua personalidade era continuamente alimentado por novas imagens. Entrava facilmente em depressão e permanecia durante horas, absorta, olhando para o vazio, ouvindo vagamente as vozes discordantes dos seus pensamentos ou tentando localizar as sensações estranhas e desconhecidas que como nuvens corriam pelo seu cérebro, mas que não identificava consigo própria. Aliás ser ela própria não era o mais importante. O importante era sempre a impressão que poderia causar nos outros. No fundo a sua vida não fazia sentido e ela sabia-o. Por isso disfarçava e fingia. Continuamente, parar era impossível, significaria o colapso mortal do seu sistema de vida.
Suicidou-se, ainda jovem, aos trinta e dois anos, ao som das bombas que rebentavam em Lisboa, corria o ano de 1923, numa noite límpida de Março. Paz à sua alma.